terça-feira, 18 de junho de 2013

O Sangue. O Vento. A Guerra. Contos. Gonzalo T. Ballester. «… uns lanceiros que exibem como troféus os capacetes pontiagudos de alemães vencidos, mas isso aconteceu na Africa Central, ou talvez um pouco mais abaixo. Guerra de lanças ainda, cargas de cavalaria, as primeiras minas, os primeiros aviões!»

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O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) A nossa maior divergência estabelecer-se-ia seguramente no que respeita à terminologia erótica: dificilmente teria eu chamado Bebezinho a uma mulher do meu amor. Em matéria de palavras amorosas fui sempre comedido, e cheguei a preferir o silêncio a exceder-me no desbragamento da pirosice lexical. E como existem muitas mulheres que só assim são felizes, ouvindo palavras como açúcar em calda, e eu me cruzei com elas, é claro que essas bateram a asa, essas escapuliram-se, e acusaram-me de pãozinho sem sal e de outras coisas mais, todas pejorativas. Pior para elas, talvez. E isto posso dizê-lo, porque me pertence: na minha linguagem íntima tendo para o bruto e para o contido, e põem-me os nervos em franja aqueles que, escrevendo, em vez das palavras do povo, usam as da fisiologia, modo indirecto de obedecer ao mandamento puritano e de aceitar as suas restrições. Não sei se alguém já terá tirado as consequências, ou antes, se já se terá interpretado essa dicotomia do léxico espanhol em bruto e piegas, sem que tenha havido lugar para a designação normal dos factos normais. Que hoje em dia se recorra ao galicismo fazer amor revela uma carência, e, esta, uma maneira de ser colectiva que só viu no amor grosseria ou lamechice, e que tentou compensá-lo com frases como amo-te com toda a minha alma, quando com o que se ama é, precisamente, com o corpo. A minha repulsa abrange, do mesmo modo, aqueles que chamam pomas aos seios.
Pois aconteceu que, a meio do caminho, Ângela se sentiu cansada, e algo se modificou no seu corpo que pressagiava novidade. Iam já pelo vale das Torres Mochas, que é como lhe chamo neste livro, o vale de Serantes nos mapas; e ali ficava, e ainda lá está, embora de outra maneira, quase só fachada, apenas fachada, e, por trás, cimento, a casa da minha avó. Caía o sol do meio-dia quando eles pararam, e eu nasci às três, no mesmo quarto em que Francisca mantinha os seus intermináveis diálogos com o Senhor: uma alcova com porta para a sala e uma cama de ferro, preta, com perilhas douradas e grinaldas de flores diminutas ao longo das grades. Por cima, uma litografia de S. José, com um S. Pedro de Roma por baixo e todos os caminhos que convergiam naquela praça a partir dos cinco continentes: caminhos com caminhantes, cada um com o seu, vestidos do que eram, de comanches, de chineses, de hotentotes. O guarda-fatos maciço, a arca onde a minha avó guardava os mistérios, um candeeiro a petróleo, uma palmatória, uma carpete pequena, uma mesa-de-cabeceira com o penico escondido, ou, pelo menos, sítio para o esconder. Nas paredes, alguns quadros mais, talvez retratos. Foi aí que nasci.
Levaram-me para a sala e deitaram-me no sofá, porque já não restavam berços, de tantos que tinha havido. Por ter nascido ali, tiveram-me sempre muito carinho, aquelas mulheres, ainda que a minha avó sentisse certa preferência pelo Álvaro, que veio quatro anos depois; ainda que o Jaime, o mais novo, nascido em 21, as tenha seduzido a todas, por ser tão bonito. Mas eu era o mais velho. O meu avô já estava cego, estava assim havia vários anos, creio que já ao entrar o século. A sua cela não distava muito da alcova em que eu nasci: só a sala as separava. Deve ter ouvido os gritos, se calhar foi até à porta a pretexto do calor, e esperou ali a notícia de que eu já estava no mundo. Também me teve muito carinho, aquele velho, nessa altura era-se velho aos sessenta anos; acarinhou-me e fez de mim seu confidente, nunca percebi porquê; eu era uma simples criança de oito, dez anos, ainda não tinha feito os doze quando ele morreu.
Contou-me muitas coisas da sua vida, estendido no sofá, tão comprido que era, e tão magro, nas lentas tardes de Verão, eu aninhado num refúgio que descreverei mais adiante, de onde o ouvia e o interrogava se, após alguma confidência, sobrevinha um silêncio. Assim que me ocorra, falarei das pessoas que contavam histórias à minha volta. O que o meu avô me referiu eram coisas e acontecimentos reais da sua infância, da sua juventude, da sua maturidade frustrada. Nada de importante, é claro, apenas uma intervenção mais ou menos ingénua na revolução chamada A Gloriosa (nome por que ficou conhecida a revolução espanhola de 1868 que destronou Isabel II), e coisas de Maiorca e das suas viagens pela Catalunha com o pai, que era militar num regimento dos que andavam sempre de um lado para, o outro: segundo ele, pelos Pirenéus nevados e a lombo de mulas, nos braços da mãe. Eu tinha oito ou dez anos, já o disse, mas ainda os não fizera quando lhe deslocava as bandeirinhas inglesas, francesas e alemãs no mapa em que ele seguia o evoluir da guerra, e quando lhe lia as revistas ilustradas e lhe descrevia as fotografias e os desenhos das grandes batalhas, terrestres ou navais: aquelas ilustrações de trincheiras alagadas, dos primeiros tanques, de couraçados afundando-se de popa. Por alguma dessas revistas deve andar a fotografia de uns lanceiros que exibem como troféus os capacetes pontiagudos de alemães vencidos, mas isso aconteceu na Africa Central, ou talvez um pouco mais abaixo. Guerra de lanças ainda, cargas de cavalaria, as primeiras minas, os primeiros aviões!» In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.

Cortesia de Caminho/JDACT