quinta-feira, 6 de junho de 2013

Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal. D. João II. Manuela Mendonça. «Deixando-se influenciar pela inigualável importância desta herança cultural, o mundo ocidental foi-se envolvendo, desde a última metade do século XV, numa mudança que acabou por ser visível em todos os sectores da vida do homem»

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«(…) É hoje pacífica a aceitação do significado dos três factores, fomes, pestes e guerras, como grandes responsáveis pelo agravamento das deficitárias condições de vida já visíveis no século XIII e que fizeram do século XIV um século de crise tanto a nível económico como social e até político. Foi desse mundo em pedaços que posteriormente emergiram os Estados, cuja reorganização nos aparece visível nos últimos anos do século XV. Perguntamo-nos, pois: qual a acção do homem e concretamente do homem político, na mudança deste cenário? De acordo com os autores até agora citados e apesar das alterações verificadas nos séculos XIII e XIV, o século XV recebeu e, de algum modo, foi fruto de uma significativa herança que mergulha as suas raízes em finais do século XI. Concretamente no campo cultural, constatamos, com E. Garin, que a escolástica e os estudos dos humanistas não diferiam na sua essência. Ambas as correntes partiram dos escritores clássicos; contudo, uma pequenina divergência separaria os dois mundos: la escuela medieval lee a los autores clásicos, se alimenta diariamente de ellos; pero se sirve de ellos conduciéndolos a sus proprios fines, limitándolos en sus proprios marcos, valiéndo-se de ellos en todo lo posible según sus proprias concepciones (..). Los hombres del siglo XV lloran sobre las ruinas y, si se disponen a restaurar un monumento o una estatua, buscan febrilmente la forma original. La civilización medieval fracciona las obras antiguas pera servirse de los fragmentos y adapta las imágenes de las divinidades antiguas imponiéndoles carácter y apárencia cristiana. Daí que os humanistas tenham considerado que os homens do medievo aprisionaram os clássicos. A sua grande novidade esteve, pois, na certeza de que la mejor escuela para enseñar a los hombres a sentirse hombres y a comunicarse entre ellos, se encuentra en una comprensíon historica y critica del mundo clásico, que logró dejarnos un mensaje ejemplar de arte y de cultura expresando clara y completamente una etapa de la humanidad. Deixando-se influenciar pela inigualável importância desta herança cultural, o mundo ocidental foi-se envolvendo, desde a última metade do século XV, numa mudança que acabou por se materializar e ser visível em todos os sectores da vida do homem. Em ligação certamente mais directa aos cultores destes novos ideais, humanistas e chefes políticos deram as mãos na experiência de construção de uma era nova, pois el humanismo, en su conjunto, habia querido devolver al hombre la legitimación ética y la percepcíon directa de su proprio mundo y, en consecuencia, los medios artisticos para representarlo, los literarios para celebrar su valor y los ético-políticos para dominarlo e construirlo.
Assim alguns dos aspectos cultivados pelo humanismo, a que não está alheia a recuperação e estudo do direito romano, já desde o século XII redescoberto e cultivado pelos letrados, fundamentaram a acção diferente dos monarcas. Essa acção diferente tornou-se realidade, não na introdução de inovações, mas na recuperação de prerrogativas antigas que, fundamentadas juridicamente e assumidas com decisão, reabriram o caminho à autoridade régia. As primeiras mudanças foram particularmente visíveis, no dizer de Vicens Vives, nas chancelarias e nas cortes dos monarcas, onde se multiplicaram os juristas que, na sua maior parte, saíram da burguesia. No final do século XV já estes homens defendiam as teorias que viriam a sustentar a mentalidade dos séculos posteriores. Daí que o caminho de centralização então iniciado tenha levado à posterior afirmação do absolutismo real.
Contudo, os monarcas do século XV, embora em recuperação de prerrogativas antes perdidas, apenas puderam ensaiar algumas mudanças, frente a um mundo novo que se lhes oferecia, mas que ainda estava fortemente dominado por uma mentalidade senhorial. Contudo, porque a estabilidade política verificada na Europa na baixa Idade Média criou condições para que as ambições dos governantes coincidissem com as necessidades dos seus súbditos, foi-se gerando um processo pacífico de continuidade que, aliado à estabilidade, constituiu condição básica para a consolidação do Estado. Deste modo ia-se tornando imperiosa a estruturação de governos que eram uma coisa distinta dos costumes da comunidade e a consciência dessa diferença foi essencial para a constituição do estado. O segredo do sucesso dos monarcas de então estava, pois, na organização que conseguissem fazer dos seus governos.
Seguindo ainda o autor antes citado, o primeiro grande passo para esta organização acontecera já no século XI, quando o papa Gregório VII (1073-1085), numa tentativa de reformar a Igreja, sistematizou nos Dictatus Papae, documento que sintetiza, em 27 pontos, o programa de Gregório VII. Deles o que ficou mais conhecido é o que se refere ao critério de nomeação para os cargos eclesiásticos, já que o Papa chama a si esse direito. Da não aceitação do mesmo nasceria, com o imperador Henrique IV, a célebre Questão das Investiduras a que, por vezes, se reduz a reforma,, uma série de medidas que visavam não só impor moralidade nos costumes dentro da própria Igreja, concretamente na luta contra o nicolaitismo (doutrina muito difundida nos séculos X e XI e que era contra o celibato dos ministros da igreja, baseada numa das heresias do século I, esta doutrina defendia ainda a liberdade sexual) e contra- a simonia (prática que consistia no processo de compra ou venda de cargos religiosos), como também pretendia, num âmbito mais amplo e exterior à própria Igreja, afirmar a superioridade da autoridade do papa que, essencialmente, se definia como soberano supremo e universal, que não podia ser julgado por ninguém e cujas determinações não podiam ser discutidas». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.

Cortesia de Estampa/JDACT