«(…) É hoje pacífica a aceitação do significado dos três factores,
fomes, pestes e guerras, como grandes responsáveis pelo agravamento das
deficitárias condições de vida já visíveis no século XIII e que fizeram do século
XIV um século de crise tanto a nível económico como social e até político. Foi
desse mundo em pedaços que posteriormente emergiram os Estados, cuja
reorganização nos aparece visível nos últimos anos do século XV. Perguntamo-nos,
pois: qual a acção do homem e concretamente do homem político, na mudança deste
cenário? De acordo com os autores até agora citados e apesar das
alterações verificadas nos séculos XIII e XIV, o século XV recebeu e, de algum modo,
foi fruto de uma significativa herança que mergulha as suas raízes em finais do
século XI. Concretamente no campo cultural, constatamos, com E. Garin, que
a escolástica e os estudos dos humanistas não diferiam na sua essência. Ambas
as correntes partiram dos escritores clássicos; contudo, uma pequenina
divergência separaria os dois mundos: la
escuela medieval lee a los autores clásicos, se alimenta diariamente de ellos;
pero se sirve de ellos conduciéndolos a sus proprios fines, limitándolos en sus
proprios marcos, valiéndo-se de ellos en todo lo posible según sus proprias concepciones
(..). Los hombres del siglo XV lloran sobre las ruinas y, si se disponen a restaurar
un monumento o una estatua, buscan febrilmente la forma original. La
civilización medieval fracciona las obras antiguas pera servirse de los
fragmentos y adapta las imágenes de las divinidades antiguas imponiéndoles
carácter y apárencia cristiana. Daí que os humanistas tenham
considerado que os homens do medievo aprisionaram os clássicos. A sua grande
novidade esteve, pois, na certeza de que la
mejor escuela para enseñar a los hombres a sentirse hombres y a comunicarse
entre ellos, se encuentra en una comprensíon historica y critica del mundo
clásico, que logró dejarnos un mensaje ejemplar de arte y de cultura expresando
clara y completamente una etapa de la humanidad. Deixando-se
influenciar pela inigualável importância desta herança cultural, o mundo
ocidental foi-se envolvendo, desde a última metade do século XV, numa mudança
que acabou por se materializar e ser visível em todos os sectores da vida do
homem. Em ligação certamente mais directa aos cultores destes novos ideais,
humanistas e chefes políticos deram as mãos na experiência de construção de uma
era nova, pois el humanismo, en su conjunto, habia
querido devolver al hombre la legitimación ética y la percepcíon directa de su
proprio mundo y, en consecuencia, los medios artisticos para representarlo, los
literarios para celebrar su valor y los ético-políticos para dominarlo e
construirlo.
Assim alguns dos aspectos cultivados pelo humanismo, a que não está
alheia a recuperação e estudo do direito romano, já desde o século XII
redescoberto e cultivado pelos letrados, fundamentaram a acção diferente dos
monarcas. Essa acção diferente tornou-se realidade, não na introdução de
inovações, mas na recuperação de prerrogativas antigas que, fundamentadas
juridicamente e assumidas com decisão, reabriram o caminho à autoridade régia.
As primeiras mudanças foram particularmente visíveis, no dizer de Vicens Vives,
nas chancelarias e nas cortes dos monarcas, onde se multiplicaram os juristas que,
na sua maior parte, saíram da burguesia. No final do século XV já estes homens
defendiam as teorias que viriam a sustentar a mentalidade dos séculos posteriores.
Daí que o caminho de centralização então iniciado tenha levado à posterior
afirmação do absolutismo real.
Contudo, os monarcas do século XV, embora em recuperação de prerrogativas
antes perdidas, apenas puderam ensaiar algumas mudanças, frente a um mundo novo
que se lhes oferecia, mas que ainda estava fortemente dominado por uma
mentalidade senhorial. Contudo, porque a estabilidade política verificada na
Europa na baixa Idade Média criou condições para que as ambições dos governantes coincidissem com as necessidades dos seus súbditos,
foi-se gerando um processo pacífico de continuidade que, aliado à estabilidade,
constituiu condição básica para a consolidação do Estado. Deste modo ia-se
tornando imperiosa a estruturação de governos que eram uma coisa distinta dos costumes da comunidade e a consciência dessa
diferença foi essencial para a constituição do estado. O segredo do
sucesso dos monarcas de então estava, pois, na organização que conseguissem
fazer dos seus governos.
Seguindo ainda o autor antes citado, o primeiro grande passo para esta
organização acontecera já no século XI, quando o papa Gregório VII (1073-1085),
numa tentativa de reformar a Igreja, sistematizou nos Dictatus Papae, documento que sintetiza, em 27 pontos, o
programa de Gregório VII. Deles o que ficou mais conhecido é o que se refere ao
critério de nomeação para os cargos eclesiásticos, já que o Papa chama a si
esse direito. Da não aceitação do mesmo nasceria, com o imperador Henrique IV,
a célebre Questão das Investiduras a que, por vezes, se reduz a reforma,,
uma série de medidas que visavam não só impor moralidade nos costumes dentro da
própria Igreja, concretamente na luta contra o nicolaitismo (doutrina
muito difundida nos séculos X e XI e que era contra o celibato dos ministros da
igreja, baseada numa das heresias do século I, esta doutrina defendia ainda a
liberdade sexual) e contra- a simonia
(prática que consistia no processo de
compra ou venda de cargos religiosos), como também pretendia, num âmbito
mais amplo e exterior à própria Igreja, afirmar a superioridade da autoridade
do papa que, essencialmente, se definia como soberano supremo e universal, que
não podia ser julgado por ninguém e cujas determinações não podiam ser
discutidas». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens
da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa,
Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.
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