O Mensageiro
«(…) Reconstruir uma igreja?!!! - exclamou, de repente, Gualdim, estupefacto,
depois de ter lido a mensagem contida no manuscrito. -
Em Nabância?!!!
[Nabância, Theodomar, Thomar ou Sellium são os nomes que tomou a cidade de
Tomar ao longo dos tempos] Gualdim Pais continuou a ler e a sua expressão
tornou-se mais séria ainda. Deu dois passos em direcção à luz e repousou, por
breves minutos, o olhar pensativo no castelo que se avistava lá ao longe, através
de uma das janelas do salão. Os olhares dos dois homens que o acompanhavam com
a presença naquele salão recaíam sobre si próprio. - Será que…? - o relinchar dos cavalos lá fora interrompeu-lhe
os pensamentos. Um homem embriagado caíra nos bebedouros, onde os animais
saciavam a sede, e provocara uma algaraviada de risos e comentários, que vinham
da rua.
- Renato... - falou o Mestre num
tom decidido, conduz o nosso convidado às cozinhas. Que lhe seja servida uma
refeição e concedido descanso. Quero
ficar a sós!
O jovem escudeiro levou o homem a uma cozinha farta, onde sobressaíam
as cores e paladares do campo. Num pequeno alguidar de madeira, podia ver-se o
tom rosado das amoras silvestres, noutro um pouco maior, a frescura das
verduras, noutro ainda o peixe seco variado e pairando no ar, um saboroso aroma
a galo do campo assado. O mensageiro sentou-se e, duas mulheres fortes, de
faces rosadas e atributos salientes, colocaram-lhe sobre a mesa pratos e copos
de barro, onde lhe verteram, de uma quartinha, um aromático vinho de Collares.
A comitiva de Henrique de Borgonha tinha-se feito acompanhar, desde
Dijon, de alguns oleiros e ceramistas, por isso, no condado, desde cedo as
refeições começaram a ser servidas em pratos [na época era frequente utilizar a
côdea do pão, como prato]. Entretanto no salão, Gualdim imobilizava-se junto à
janela... não tinha manifestado todo o conteúdo da missiva. Estava apreensivo. Olhou
novamente para o manuscrito que segurava nas mãos. Enquanto lia e relia as
palavras de Sua Majestade andava em círculos pela sala, detendo-se, de quando
em quando, junto à janela. Seguido do selo do monarca, de leitura quase
imperceptível, via-se escrito Santa Maria e imediatamente abaixo, via-se o
desenho de uma serpente no qual estava assinalada a letra M, tudo no canto inferior direito.
- O Abraxas! - pensou Gualdim, recordando a sua passagem pelo
Egipto, onde tomara contacto com as crenças gnósticas. Já tinha visto um selo
semelhante àquele no qual figurava uma personagem com cabeça de galo, cujo
corpo estava coberto por uma armadura, do qual saíam duas serpentes em vez de
duas pernas, cada uma com duas cabeças. Mas esse era um dos símbolos secretos da Ordem. A cruz figurava nele por
cima do ser com cabeça de galo e era acompanhado da inscrição Secretum Templi. Cria-se que o Abraxas dava vigilância, poder e
sabedoria. Aquele que anuncia a chegada da Luz, a personagem com cabeça de
galo, era aqui representada como o despertado.
Mas a serpente... – pensava ele - ... era o símbolo da salvação, que Moisés
tinha colocado sobre um pau. Quem olhasse para ela seria salvo do seu
infortúnio. Era a protectora da sabedoria escondida. A serpente... letra M... qual seria o objectivo do rei? Teria por certo a ver com o
reino... a Ofiusa... a terra da serpente - pensava Gualdim, em silêncio.
- Temos de partir quanto
antes... tenho que reunir a comparsaria, e preparar a viagem. Não há tempo a
perder, quero ver se partimos em menos de uma semana! - disse para si, Gualdim
Pais, enquanto se dirigia à porta.
Hugues de Payns havia chefiado
alguns anos antes um conjunto de cavaleiros, ordenados para o seu serviço,
renunciando ao mundo e consagrando-se a Cristo, na protecção dos peregrinos e
da Cidade Santa de Jerusalém. Entre esses homens que se dirigiam ao monte Moriah
estavam André de Montbard, Geoffroy de Saint-Ometr Hugues Rigaud, Archambaud de
Saint-Aignan, Nivard de Montdidier Rossal, Geoffroy Bissol e Gondomar, que se
presume ser português [há alguns autores que fazem referência ao cavaleiro
e 5º Mestre da Ordem do Templo em Portugal, fr. Pedro Arnaldo, como sendo o
nono cavaleiro: Gondomar, provavelmente, visto ser natural desta terra, ao que tudo
indica, e haver documentação que se refere a um dito cavaleiro Arnaldo (da
Rocha), que poderá guiar-nos até à sua pessoa]. Dirigiu-se à Terra Santa, nesta cruzada, um grupo de nove cavaleiros,
todos homens veneráveis. Tomando o tríplice voto de Castidade Pobreza e Obediência,
dedicaram as suas vidas, dali até à morte, à protecção dos peregrinos e à
garantia do Reino de Cristo. Foram mais tarde chamados Cavaleiros do Templo
de Salomão, ou simplesmente os Templários. A nobre missão destes
nove homens foi dignificada com a atribuição de terras e benefícios por parte
de reis e cónegos, para proverem às suas necessidades, merecendo o
reconhecimento do patriarca de Jerusalém, às mãos de quem prestaram juramento
de obediência. O então novo Rei de Jerusalém, Balduíno II, que sucedera seu
primo Balduíno I, logo viu na atitude dos nobres e valorosos cavaleiros algo de
grande valor e importância. O Concílio de Troyes, trouxe-lhes a Regra e
o hábito branco, símbolo de inocência, no qual foi inscrita a cruz
vermelha, pelo martírio. Por outro lado, também se sabe que estes nove
cavaleiros entraram muito poucas vezes em campanha, enquanto estiveram na Terra
Santa.
Gualdim assistira, em Braga, ao juramento d'El-Rei Afonso Henriques,
familiar em segundo grau de Hugues de Payns e do abade de Claraval. Era ainda
companheiro de Pedro Afonso, filho bastardo do monarca e Mestre de Avis [a
Ordem de Avis é dissidente da Ordem de
Calatrava, que teve origem em Espanha. Foi fundada por Afonso Henriques
quando alguns frades se radicaram em Évora, tendo ficado conhecidos pelos Freires de Évora. Em 1211, Afonso II
doou-lhes o lugar de Avis, e pensa-se que nessa época, a ordem portuguesa já
tivesse um estatuto independente embora continuasse subordinada à castelhana].
Sabia que o rei tinha uma missão maior. Sua Majestade queria encontrar-se com
ele em Al-Cobaxa! (designação
árabe para Alcobaça). O seu olhar era agora de esperança. Estava na hora...
tinha chegado o momento... a sua
missão começava aqui! Estando certo do seu dever para com o rei e dos
ideais que juntos partilhavam e defendiam, começou a preparar mentalmente a
viagem. Necessitava de pessoal para trabalhar e de um Mestre canteiro».
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda
Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT