Fabricador de instrumentos de
trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente
transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da
história na vida do homem?
Prefácio
«(…) Montaillou é uma pequena aldeia, hoje francesa, situada no
Sul pirenaico do actual departamento de Ariège, muito perto da fronteira franco-espanhola.
O departamento de Ariège corresponde ao território da diocese de Pamiers e ao
antigo condado medieval de Foix, que constituía im Principado pirenaico,
outrora independente: a partir dos séculos XIII e XIV, este Principado,
governado pela importante família dos condes de Foix, tornara-se satélite do
poderoso reino de França; as possessões francesas, por seu turno, incluíam já a
grande província de Languedoc, limítrofe de Ariège.
Aldeia de camponeses e de pastores, situada a 1300 m de altitude, a
comunidade de Montaillou não teria tido interesse particular se não tivesse
sido objecto, entre 1318 e1335, de um inquérito monumental, extraordinariamente
minucioso e exaustivo: de repente, esta modesta localidade tornou-se a aldeia
europeia e mesmo mundial mais conhecida de toda a Idade Média! Este velho
inquérito é obra de Jacques Fournier, futuro papa de Avinhão; em 1320 ele é
bispo de Pamiers e inquisidor local. Jacques Fournier, de modo geral, é menos
cruel que os seus confrades na repressão anti-herética. Mas a sua inteligência,
a sua paciência e a sua atenção ao pormenor fazem dele, segundo o historiador
inglês Hilton, um dos grandes inquisidores de todos os tempos.
Historicamente, Montaillou é a última aldeia que sustentou activamente,
enquanto tal, a heresia cátara ou albigense. De facto, esta
desaparecerá totalmente do território francês, depois de ter sido, em
1318-1324, definitivamente extirpada de Montaillou, graças aos bons ofícios
de Jacques Fournier. Esta aldeia é portanto a ave rara que os
historiadores de bom grado procuram e que, em geral, só muito raramente
encontram! Ela é o último testemunho vivo, e bem vivo em 1320, de uma formação
cultural e religiosa votada a partir de então ao mais completo desaparecimento!
A heresia cátara merece por si mesma algumas explicações. O catarismo é uma das principais
heresias medievais: manifestou-se nos séculos XII e XIII Languedoc, actual sul
de França, na Itália do Norte, e sob formas um pouco diferentes nos Balcãs. O catarismo formou-se talvez a
partir de longínquas influências orientais, maniqueístas nomeadamente…
Da Inquisição (maldita )
à Etnografia
Para quem quiser conhecer o camponês das sociedades antigas e muito
antigas, não falam as grandes sínteses - regionais, nacionais, ocidentais: penso
nos trabalhos de Goubert, Poitrineau, Fourquin, Fossier, Duby, Bloch… O que falta,
por vezes, é o olhar directo: o testemunho, sem intermediário, que o camponês dá
de si próprio. Esse olhar, para o período posterior a 1500, fui buscá-lo a memorialistas que saíram, um, da nobreza
campesina mais depauperada; outro, da camada mais alfabetizada dos lavradores
ricos: o senhor de Gouberville, por volta de 1550, Nicolas Rétif da La Bretonne, dois séculos mais tarde,
convidaram-me a observar de perto, na sua companhia, esse mundo que nós perdemos, onde viviam os camponeses dos chamados
bons velhos tempos. Era para mim tentador aprofundar a investigação e procurar
outros dossiers deste tipo, mais
preciosos e ainda mais introspectivos, sobre os camponeses de carne e osso. Por
sorte para nós, e azar para eles, um homem, no século XIV do surto demográfico,
deu voz aos aldeões, e mesmo a toda uma aldeia como tal.
Trata-se, neste caso, de uma localidade da Occitânia do Sul; mas é bem
sabido, dado que esta investigação é de história agrária francesa, que a
Occitânia, quer queira quer não, fará parte do hexágono, e muito rapidamente...
O homem em questão, é Jacques Fournier, bispo de Pamiers de 1317
a 1326. Este prelado lúcido, devorado por um zelo inquisitorial,
pertence às novas elites occitânicas, que vão dominar o papado de Avinhão. Será
papa em Comtat, mais tarde, com o nome de Bento XII. Não é apenas célebre pelos
seus vigorosos contributos para a teoria da visão beatífica. Etnógrafo e
esbirro, soube ouvir durante o seu episcopado, os camponeses do condado de
Foix, e sobretudo da alta Ariège; fazia-os engolir o pão da dor e a água das
tribulações; mas torturava-os pouco; interrogava-os com minúcia e durante largo
tempo, a fim de detectar entre eles a heresia cátara ou, simplesmente, um
desvio em relação ao catolicismo oficial. Esta escuta chegou até nós no volumoso manuscrito latino que Jean
Duvernoy publicou recentemente em edição integral. Assim foi posto à disposição
dos historiadores e do público latinista, este testemunho da terra occitânica
sobre si própria; testemunho que ultrapassa em muito o estrito domínio das
perseguições por heresia, dentro do qual Jacques Fournier teria podido
normalmente confinar-se, se se tivesse limitado a seguir a sua vocação de
inquisidor. Para além das perseguições ant-cátaras, os três volumes publicados
por J. Duvernoy interessam, com efeito, às questões da vida material, da
sociedade, da família e da cultura camponesa. Encontramos nos textos assim
recolhidos uma dose de pormenores e de aspectos da vida corrente que se procuraria
em vão nos forais ou mesmo na documentação notarial».
In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324,
Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa.
1294-1324, Edições 70, Lisboa.
Cortesia de Edições 70/JDACT