Lisboa e as antigas casas de comeres
«No primeiro dia de Abril de 1984,
as preocupações dos portugueses não lhes permitiam recordar nessa data a
criação, seiscentos anos antes, de uma das mais curiosas instituições da
actividade laboral portuguesa, a Casa dos
Vinte e Quatro.
Fundada por conta do mestre de Avis, responsável pela governação,
agrupava os trabalhadores portugueses, dois
de cada mester, dando lhes assento na Câmara de Lisboa, incumbidos de
defender aí os interesses dos oficiais
mecânicos que, nas suas humildes profissões, asseguraram serviços
essenciais à população da capital. Seriam, porém, os Descobrimentos , e já em
pleno século XVI os directos responsáveis pela radical transformação de tais
actividades, obrigados a responder a um aumento de população e de riqueza, ao
inesperado aparecimento de muitos artífices estrangeiros e à atracção da
aventura ultramarina que, levando de Lisboa muitos e bons artífices, criava
lugar à gente das províncias que demandavam Lisboa em busca de melhor sorte. O
próprio Bandarra, poeta e sapateiro de Trancoso, lamuriava-se nas suas
conhecidas trovas de não poder exercer o seu mister em Lisboa, onde seria,
certamente, mais apreciado e melhor recompensado.
Ficavam lá bem longe os tempos pacatos de João I. Todos os dias surgiam
novos ofícios e novos oficiais que solicitavam à Casa dos Vinte e Quatro o indispensável regimento que lhes permitisse trabalhar
em paz e sossego, protegidos da cobiça dos estrangeiros, da concorrência
desleal e dos menos escrupulosos, capazes de tudo pela avidez do lucro. Aos
velhos carpinteiros, barqueiros, barbeiros, calceteiros e boticários depressa se
juntaram os cabeleireiros, sirgueiros, peliqueiros, brunidores de holandilha e,
como não podia deixar de ser, os profissionais de comes-e-bebes, com especial relevo para os pasteleiros,
chocolateiros, confeiteiros e taberneiros, indispensáveis na Lisboa portuguesa
de Quinhentos, que foi, infelizmente por pouco tempo, a capital do mundo.
Dos antigos pasteleiros
Ao contrário do que a designação de pasteleiro significa hoje, para
nós, homens e mulheres da actualidade, os
pasteleiros portugueses do século XVI não se dedicam ao fabrico de
doçarias. Tal actividade era própria dos confeiteiros. Embora com actividade reconhecida
desde tempos imemoráveis, só em 1554
o número de mestres pasteleiros
sediados na capital justificou que se organizassem, para solicitar ao poder
público regimento próprio, como têm os outros ofícios mecânicos, no que foram
prontamente atendidos. Mas só muito mais tarde, em 1716, seriam admitidos na Casa
dos Vinte e Quatro, onde foram anexados à bandeira dos Tecelões, embora
contra a vontade dos procuradores dos
mesteres e da prestigiosa instituição
onde desejavam entrar a todo o custo.
Numa época de grandes e fabulosas gestas, não mereciam, naturalmente,
os modestos pasteleiros atenções de cronistas, nem favores de poetas.
Felizmente, a sua actividade salvou-se intacta na secura dos regimentos dos seus ofícios, peças de inestimável valor, que, desprevenidas, trazem até
nós o eco fiel do dia-a-dia destes longínquos antepassados dos nossos
restaurantes. Tendo como princípio fundamental da sua actividade autorizar a
abertura de loja só aos mestres examinados, começaram os ditos regimentos por regulamentar os exames do
ofício, fabricando à vista do júri um
pastel de frangão, um pastel real, uma empada de pescada e um conjunto de pequenas
unidades, cujos preços variavam entre cinco e 50 reais.
Seguia-se apertado interrogatório sobre os adubos próprios dos pastéis
confeccionados com cames de vaca, porco, cervo e carneiro, tendo em conta que
os temperos variavam com a época do ano, aplicando-se de modo e em quantidades
diferentes ao fabrico de Verão e ao fabrico durante o Inverno. Os alunos
propostos a exame pagavam 300 reais sendo portugueses, e o dobro se o não fossem.
As provas eram rigorosas e pressupunham quatro anos de aprendizagem gratuita em
loja de mestre examinado e, na maior
parte das vezes, sob duríssimas condições. Em caso de reprovação, os candidatos
podiam requerer novo exame três meses depois, sendo sempre obrigatória a prévia
inscrição na Irmandade de São Marçal. Os mouriscos, que abundavam em Lisboa,
não podiam ser examinados, concedendo o regimento
privilégios especiais aos filhos de
mestres que quisessem continuar no ofício
de família.
Dos produtos e dos preços
Há 500 anos, as lojas dos
pasteleiros de Lisboa primavam por uma organização a vários títulos
surpreendente. Asseadas em extremo, cobriam o vão da porta com uma cortina branca,
podendo, além dos pastéis, guisar e assar peixe e carne para vender
ao povo. Toda a produção era obrigatoriamente vendida na loja, sendo rigorosamente
proibida a venda ambulante sob pena de graves sanções, com excepção das empadas que vierem de fora da cidade e que
tenham bilhete do juiz do ofício. Proibida estava também a utilização de
carne de ovelha, cabra, bode ou porca, assim como a venda de empadas ou pastéis que tivessem sobrado da véspera». In Manuel Guimarães, Histórias de
Ler e Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN 972-699-294-X.
Cortesia de Vega/JDACT