quinta-feira, 4 de julho de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Primeiro, que ele era judeu, e sê-lo-ia sempre mesmo depois de aspergido à força com a graça santa da água do baptismo; depois, porque chamando-o mostrava El-Rei a sua fraqueza e as fraquezas de outros servidores que tentando curá-lo…»

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«(…) Frei Tomás. Agostinho pela ordem, cidadão do Mundo pela vontade própria, crente num deus maior que via muito arredado deste mundo, frei Tomás era um viajante convicto de que é nas viagens que se conhecem os homens e seus modos de agir, de pensar e de sentir, e que em cada ida há o retorno da cultura que carece. Tinha andado léguas e léguas, atravessado a maior parte da cristandade, convivido com cristãos, mouros, judeus, para seu espanto encontrara em todos palavras de acerto, almas boas, gente bem criada, adorando ora a um, ora a outro deus, ou talvez ao mesmo em diferentes palavras e modos e nomeações, gente diferente e contudo tão parecida, pois que se só há uma raça que pensa e age e essa é a do homem, e até Deus se revelou em Homem, de formas diferentes, a todos eles...
A verdade, a seu ver, é que a maldade e a discórdia não estará no modo como se adora ou crê, mas em cada homem e naqueles que os governam, e certo é que os que lutam e que matam o fazem, mesmo em nome de Deus, por vontade do homem que os dirija. E, pensava frei Tomás, não há crueldade maior do que a dos homens, principalmente naqueles que, com falas escatológicas, matam e mandam matar em nome de um Deus que nunca se lhes revelou a pedir tais sanções... Ia mal o Mundo, pensava frei Tomás. Andara pelo reino dos Reis Católicos e vira sangue a correr, e inocentes perdidos, e almas torturadas, mortes na fogueira e no garrote, e uma impiedade que alastrava e fazia desacreditar.
A Igreja está fraca. E sempre que está fraca requer o uso da força... Voltava agora cheio de receios ao seu reino de origem. Também por aqui as coisas pioravam, a raiva andava menos surda e mais cruel, manifestações de toda a ordem proclamavam-se nos actos... - Deus, se é que existes, não fiques a observar e mostra-Te. Era o rogo, ainda que incrédulo, deste frei Tomás.

Nuno Coelho, aliás Zacuto de origem, agora cristão-novo, estava na câmara de El-Rei. Por mil voltas aziagas, quisera El-Rei evitar chamá-1o. Primeiro, que ele era judeu, e sê-lo-ia sempre mesmo depois de aspergido à força com a graça santa da água do baptismo; depois, porque chamando-o mostrava El-Rei a sua fraqueza e as fraquezas de outros servidores que tentando curá-lo falaram e que de nada lhe serviam. Depois, porque El-Rei sempre que via Nuno Coelho, aliás Zacuto de origem, lembrava-se do corpo cheio da bela Raquel, a moça, infelizmente judia, que El-Rei achava de mais belo peito cheio e de ancas mais airosas, e de carne mais comestível em todo o reino, com, Irra, blasfémia! A cara mais santa e linda de toda a cristandade. Uma Madalena, Irra, blasfémia! De longos cabelos azeviche e olhos a condizer, boca carnuda, rolicinhas formas... - Estais a atentar, rei? - perguntou Zacuto notando o alheamento do monarca. - O quê, sim? - assarapantou-se El-Rei. – Pois o que dizeis?
Zacuto dizia com grande mordacidade escondida, que os achaques de El-Rei mereciam um cataplasma a condizer, assim uma massa rubefaciente a aplicar-se em directo sobre a pele, mas neste caso emplastro muito próprio com uma coisa que ele próprio providenciara, cuidara e misturara, e que ensacara a rigor em muito fechado saco de ervas aromáticas, aromáticas para sua defesa, pois o conteúdo, e disso pedia desculpa, tinha um cheiro de não se suportar, mas que, depois de aplicado, iria aos poucos melhorando com o tempo... E desde que fizesse algum efeito, despenalizando as pernas tristemente rotas de El-Rei, então por bem empregue se diria o cataplasma e até o cheiro náusea que gerava...»

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de C. de Leitores/JDACT