«O primeiro ver é o do homem prático-político, o
segundo, o do artista-político. Um e outro também divergem no modo de não ver
as coisas. O primeiro porque simplesmente as não vê; o segundo porque não
repara nelas. Ao contrário do que se supõe, o mundo real não existe para o
homem prático-político, o que existe é a sua instrumentalização. Uma flor só
lhe existe se a puser na lapela ou mesmo num jarro; como um pássaro só lhe é
real se o tiver numa gaiola ou o comer frito». In Conta-Corrente II
«Se chamamos à morte um sono é porque parece um
sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa
diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade política construímos
as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos-políticos,
como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é
aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização política.
A civilização política consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete,
e depois sonhar sobre o resultado político. E realmente o nome falso e o sonho
verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque
o tornámos outro.
Manufacturamos realidades políticas. A
matéria-prima política continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu,
afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho
mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um político é um instinto
de glossário, porém não queremos com o instinto político, mas com a
pressuposição de outro sentimento político. E essa pressuposição é, com efeito,
já outro sentimento correcto da liberdade, da fraternidade, da igualdade». In O Livro do Desassossego
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