O Amor já não é o que era
«Enquanto o véu dos conformistas se desfazia em farrapos, o mundo
ocidental apercebeu-se, há bem pouco tempo, de que, na sua essência, os
comportamentos transformavam-se: as maneiras de amar já não são o que eram, tal
como o não é a relação entre o masculino e o feminino. E um dos aspectos mais
perturbadores de uma modificação simultânea das relações familiares, uma mutação
incómoda, talvez a mais importante das transformações que afectam a nossa
civilização em vésperas do terceiro milénio. E bem mais do que todos aqueles sobressaltos
a que os hábitos de linguagem nos impelem a considerar como revoluções. Não é,
pois, surpreendente que os historiadores tenham virado, recentemente, a sua
atenção para estes fenómenos. Mas a exploração revela-se singularmente difícil
do novo espaço em que se aventuram as suas pesquisas. A observação dos factos
já o é. Com efeito, entre os vestígios explícitos que nos chegam das
civilizações do passado, os que se referem ao amor, à sexualidade, são bastante
discretos: são o pouco que as fortes censuras deixaram filtrar e, muitas vezes,
para melhor dissimular o que não parecia decente exibir. Assim, talvez fosse
conveniente começar por escrever uma história apaixonante, brilhante, do pudor.
Por outro lado, estes códigos, estes textos normativos ou mesmo estas
narrações, estas canções, estas gravuras, que propõem formas de procedimentos
nem sempre se deixam decifrar facilmente: quem pode assegurar que, nos poemas
dos séculos XII e XIII, ao celebrarem o amor a que chamamos cortês, não se
esconde um outro rosto, o verdadeiro, o masculino, por detrás do rosto da dama cantada?
Por último, o mais árduo continua a ser, sem dúvida, interpretar os
raros vestígios, perceber os lentos movimentos que adivinhamos poderem
adulterar profundamente uma formação moral que só conhecemos superficialmente e
que, de tempos a tempos, a levam a modificar-se por completo. Sou tentado a
seguir Paul Veyne, pensando, tal como ele, que estes movimentos correm o perigo
de ficar por explicar. Estou convencido, em todo o caso, de que seria demasiado
simples procurar as causas, ontem ou hoje, nos fluxos e refluxos do
cristianismo.
O Amor em liberdade. A regra do jogo. Tudo começa na Babilónia
Tal como as necessidades vitais e os rituais do comer e do beber, o
amor e a sexualidade que lhes está subjacente estão inseridos na nossa natureza
mais profunda e primária. Cada cultura guardou-lhe, forçosamente, um lugar
privilegiado no seu sistema, apresentando-os à sua maneira. Por isso, da mesma
forma que não sabemos como os nossos antepassados da Pré-História
confeccionavam os seus alimentos, não saberemos como faziam e sobretudo como
apreciavam o amor: as imagens que nos deixaram sobre o amor são ambíguas e difíceis
de interpretar. Só um documento escrito nos poderia oferecer um conhecimento
circunstanciado e sem rodeios. Como o Antigo Egipto, a Mesopotâmia é o país que
mais cedo conheceu e utilizou a escrita, tendo-nos deixado, entre o ano 3000
a.C. e os primórdios da nossa era, um monumental amontoado de documentos, algo
como meio milhão de tábuas, que abrangem todos os géneros literários, desde os pormenores mais minuciosos do
quotidiano até às criações de uma imaginação desenfreada. Seria uma verdadeira
surpresa se, no meio de toda esta confusão, profusamente estudada pelos
assiriólogos durante um longo século, não encontrássemos, entre outros
tesouros, algum elemento que nos desse a ideia da vida sexual e amorosa dos
muito antigos habitantes de um país onde nasceu, na viragem do IV para o III
milénio, a primeira grande civilização realmente digna deste nome, complexa e
requintada em todos os sectores da sua existência.
Tabus...
Se é verdade que os Mesopotâmios ignoravam muitos dos nossos tabus
relativos ao sexo e ao comportamento sexual, pelo menos, ao contrário dos
nossos contemporâneos, não gostavam de dar um valor exagerado, pelo menos por
escrito, às suas preocupações, capacidades e proezas neste domínio. Eram
atitudes tão naturais que não mereciam demasiada atenção. Mesmo na
correspondência, a parte mais personalizada da sua literatura, parece terem
guardado algum pudor no que respeita aos seus sentimentos mais íntimos, não
encontramos a menor declaração de amor, nem mesmo de efusão de sentimentos ou de
ternura. Semelhantes movimentos do coração só raramente aparecem à luz do dia e
são mais frequentemente sugeridos do que exprimidos. É o que acontece na
missiva em que a rainha de Mari, cerca de 1780 a.C., desejava que o
seu marido, em campanha, voltasse o mais depressa possível ao lar, tranquilo e satisfeito, convidando-o a
trazer a veste de lã que lhe havia preparado e que lhe enviava pelo mesmo
correio. Ou no bilhete desesperado de uma jovem mulher, mais ou menos da mesma época,
que anuncia ao seu marido a morte, aos sete meses de gravidez, do bebé que
trazia no ventre, assim como o seu medo
de morrer de doença ou de desgosto, abandonada por todos, longe do esposo que
tão ardentemente desejava voltar a ver. Assim, não é de esperar que, no meio do
seu património literário, possamos surpreender algo que o amor, sentimento,
paixão ou simples divertimento, possa ter desencadeado, quer se trate de
experiências, aventuras ou dramas pessoais». In Georges Duby, Jean Bottéro, Amour
et Sexualité on Occident, Société d’Éditions Scientifiques, Paris, 1991, Amor e
Sexualidade no Ocidente, Terramar, Lisboa, 1998, ISBN 972-710-053-8.
Cortesia de Terramar/JDACT