Introducção
«É como a luz do sol o
génio dos grandes poetas. O seu clarão brilhante, espalhando-se na terra,
aquece e alumia as almas de todos os que encontra. Manifestando-se no livro,
astro da intelligencia, afugenta as trevas dos cérebros mais obscuros;
esclarece e persuade, até os próprios que não querem convencer-se nem
illustrar-se. Na poesia, enternece os insensíveis, arranca lagrimas dos
corações mais seccos, risos dos lábios mais cerrados, gritos de admiração dos
peitos mais frios e indifferentes. É uma força invencível, que transforma os indivíduos,
subjugando a vontade aos mais rebeldes e o espirito aos mais pertinazes.
Denuncia, emfim, a centelha divina, que o Creador poz na mente do homem.
Quando o escriptor se
chama Homero, Virgílio, Dante, Milton, Camões
ou Garrett,
os seus poemas atravessarão, o tempo e o espaço, cada vez mais admirados e
queridos. As suas idéas, similhantes aos raios fulgurosos do rei dos astros,
brilharão com o mesmo esplendor com que foram enunciadas milhares de annos
antes! Depois de terem commovido e enthusiasmado as gerações extinctas,
demonstrarão ás presentes que nem os séculos depravados, nem as epochas de
obscurantismo lhes alteraram a primitiva grandeza e a graça nativa! Filhas divinas
do génio, só deixarão de existir quando Deus, destruindo o mundo e chamando a
si o ultimo homem, volver tudo ao nada, de onde nos tirou a sua omnipotência.
Ha quarenta e três anos,
em 1837, que o rigor da sorte me
arremessou, creança, desvalido e ignorado, para as praias do exilio, nas
margens do Guajará. A fortuna adversa, não contente de haver-me expatriado,
internou-me em seguida nos sertões do Amazonas, talvez com o intuito de me
tornar mais rude do que me fizera o acaso ao sair do berço. A primeira luz, que
animou a solidão da minha alma exilada, foi produzida pela leitura dos Lusíadas. Deslumbrado por esse clarão
intensíssimo, o meu espirito juvenil sonhou com as aventuras perigosas, que celebra
o épico immortal, e arrastou-me para o seio das florestas. Ali, porém, a
convivência com os índios e com as feras, bravas como elles, breve enfraqueceu
a chamma de esperança redemptora, com que me aquecera o cantar de nossas
glorias. Percorria já, sem enthusiasmo e sem pavor, as matas virgens e as
solidões profundas, que circumdam a enorme bacia do rio gigante. Arrojava-me,
unicamente como caçador ferino, através das selvas densas e sombrias, onde se
acoutavam a anta e o porco bravo; feria sem dó nem repugnância os seios
virginaes de arvores sagradas, derramando pelo solo, juncado de folhagem
apodrecida, os óleos preciosos e as resinas odoríferas; destruía com prazer
estúpido formosíssimas e prodigiosas flores, filhas dilectas d'esse paraizo
encantado; e não tinha consciência de que estava mutilando, depois de as ter
profanado com olhares de impia ignorância, as mais admiráveis maravilhas da
creação!
Mas, um dia, aos treze
annos, talvez guiado pelo archanjo da poesia, entrei na modesta residência de
uma familia indígena; e encontrei lá, aberto, o livro do meu destino, a ordem
que me enviava a Providencia, para que mais tarde se cumprissem os seus
mysteriosos desígnios. Era o Camões, o immortal poema de Garrett.
Como e porque iria ali
parar esse monumento litterario, a mãos de gente que não sabia ler, senão para
que eu viesse a receber piedosamente o derradeiro adeus d’aquelle que o tinha
levantado á gloria da sua pátria?!
Olhando em torno de mim, depois de o ter lido, fiquei como que assombrado com o
espectáculo grandioso que me rodeava. Abriram-se-me repentinamente os olhos da alma;
de creança que era, acordava homem, e tão diferente do que fora até esse
momento, que a mim próprio me desconhecia!»
In Francisco Gomes Amorim, Garrett,
Memórias Biográficas, Ao rei-consorte Fernando II, Conservador da Biblioteca e
Museu de Antiguidades Navaes, Sócio da Academia Real das Sciencias de Lisboa,
do Instituto de Coimbra, da Real Academia Hespanhola de Historia, Imprensa Nacional,
Lisboa, 1881.
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