domingo, 18 de agosto de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo Séculos XII-XIII. «Sabe bem que, daí para a frente, terá de viver num território inimigo no meio dos cristãos. Mede os perigos de uma tal situação: os Mudéjares que encontrou em Toledo não se assimilaram rapidamente aos cristãos…»

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Um toledano diferente dos outros
«(…) Perto dali, em Cádiz e no Puerto de Santa Maria, também há azáfama. Também aqui barcos levantam âncora, só que tomam uma direcção diferente: uns dirigem-se para o Levante, outros para a Africa do Norte. Também aqui se parte à aventura, se espera encontrar um outro caminho de vida; na imensidade do mar, procura-se o caminho que conduzirá a uma nova existência: em Istambul, nos estados pontificais, ou no Magrebe. São os judeus de Espanha que deste modo abandonam Sepharad, donde são expulsos por um decreto real, assinado em Granada em 31 de Março de 1492. Na praia de Cádiz, um grupo que não conseguiu lugar numa dessas naves, vê a armada afastar-se. Essas pessoas esperarão durante mais alguns dias o momento da partida. Um rapazinho de dez anos está um pouco afastado. Sente-se triste. Um homem de turbante aproxima-se e o diálogo começa de imediato. - Salamt - Diz o homem. - Shalom! - responde a criança. Sim, a paz seja contigo, filho de Israel, a paz seja contigo, homem do Islão. – Partes? – Parto. - Donde vens? - De Toledo.
E eis que o mero nome de Toledo, pronunciado pela criança judia suscita ainda mais interesse nesse mouro que passava por ali e que, por um breve momento, se interessa pela criança. - De Toledo! Sabes, rapaz, que o meu nome é Tulaytuly, o toledano. E tu, de que família és? - Chamo-me Abraham Bem Salomon de Torrutiel, e vou-me embora com o meu pai e todos os meus. A minha família dirige-se a Marrocos, porque a rainha Isabel já não nos quer nas suas terras. Parte da nossa família já se encontra em Fez.
Mas o rapaz interrompe aí as suas explicações, porque o pai regressou e cumprimenta o mouro. Entre aqueles que sofrem, o diálogo é partilha. Os dois homens evocam o seu destino comum. Um encontra-se ali, com todos os seus, porque por fidelidade à sua fé recusou abraçar o catolicismo e, portanto, tem de expatriar-se, deixar para sempre esta terra castelhana que foi sua e esta cidade de Toledo onde, durante séculos, habitou a sua família. Para ele, era Toledoth, a Jerusalém do Ocidente, a cidade das gerações, assim chamada por causa das tribos de Israel que outrora vieram povoá-la. O outro homem é Tulaytuli. Sabe tudo isso. Sabe que Toledoth, Tulaytula, Toledo, não são mais do que uma só e mesma cidade, acolhedora para uns e para outros mas que cada um quis, por sua vez, fazer exclusivamente sua, como se o amor de uma mãe não pudesse dar-se na totalidade a cada um dos seus filhos; chamá-la com um nome próprio, não era uma forma de se apoderar um pouco mais dela?
Mas o que sobretudo impressionou Tulaytuli foram aquelas poucas frases que esse amigo de ocasião, esse compatriota judeu toledano, lhe disse num tom profético: O nosso povo esqueceu a lei de Israel trocando-a pela sabedoria do mundo. E: A cólera de Deus manifestou-se contra o seu povo porque ele foi infiel; só os pobres e os infelizes vivem ainda na fidelidade, ou ainda: Justo castigo para esse povo eleito cujo escol preferiu salvar a sua fortuna em vez da sua alma. Tulaytuli retirou-se acabrunhado por pressentir que o seu destino será o mesmo desses judeus exilados. Há sete meses que Granada se entregou aos reis católicos, a 2 de Janeiro, e ele interroga-se. Agora que o Islão perdeu todo o território na terra de Espanha, vai aceitar as condições generosas que foram oferecidas aos vencidos no momento da rendição da cidade? É verdade que as autoridades cristãs se comprometeram a deixar viver os fiéis do Islão na sua fé, a permitir-lhes conservar a sua língua e os seus costumes e isso para todo o sempre. Mas o que valem esses acordos concedidos pelos cristãos na euforia da vitória?
Sabe bem que, daí para a frente, terá de viver num território inimigo no meio dos cristãos. Mede os perigos de uma tal situação: os Mudéjares que encontrou em Toledo não se assimilaram rapidamente aos cristãos e os cristãos em al-Andalus não adoptaram outrora os hábitos muçulmanos ao ponto de lhes chamarem moçárabes, arabizados? Ele não quer e não aceita ser um cristianizado. E, então, volta-lhe à memória esse aviso do mufti, alfaqui da comunidade de Segóvia em Castela: Não utilizes a língua, os usos, os costumes dos crisãos, nem as suas vestes, e assim estarás livre dos pecados do inferno. - Abençoado mufti, exclama então, as tuas palavras são uma luz. Está decidido, vim a Cádiz para avaliar as condições da expulsão. Estes judeus são um exemplo para mim, mostram-me o caminho a seguir. Não, não vou ficar mais tempo aqui correndo o risco de perder a minha alma. Irei pois para terra do Islão porque é lá que se encontram os meus irmãos na fé.
Agora, a noite caiu. Tulaytuli ficou ali, só, na praia. O crescente da lua ilumina com a sua luz baça o oceano encrespado. Para ele, esse céu estrelado, esse mar que cintila, esse solo que devolve o calor armazenado durante o dia, tudo isso canta a glória do Criador dos mundos. Toda a terra se transforma numa mesquita. Perde-se na imensidão do seu deus. Ao fim de um instante, a chamada para a oração da noite, transmitida pelos sinos da igreja vizinha, tira-o da sua mediação e trá-lo de volta ao tempo presente». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT