Apresentação. Pascoaes: o texto sonâmbulo
«Talvez a maior grandeza desta obra esteja na soberana solidão com que
nos olha. Indiferente às convenções, escandalosamente distante daquilo que no
seu tempo (e no nosso) era a civilização e a literatura. O Pobre Tolo é uma figura de fronteira na paisagem mental do século
português. Uma figura seminal, nocturna, uma negríssima substância insone, íntimo incêndio de escuras flamas, como
algures se diz, uma conversa de mortos, arbitrária, irónica, fragmentária.
Raras vezes se viu texto assim na nossa tradição literária. O autor encerra um
regresso post-mortem (o seu?), como
outrora as almas, pelos atalhos nocturnos. Sou
velho espectro ressurgido. [...] Vivo, estou aqui, diante desta velha casa onde
nasci, sofri e amei, e donde me afastaram, certo dia, metido entre quatro
tábuas. Volta para avisar-nos da sombra que imperceptivelmente nos corroi,
para dizer-nos dessa morte mais escura que é a morte dos que fingem a vida,
surdos ao seu esplendor ou ao seu gemido. Eis, em poucas palavras. O Pobre Tolo: este texto sonâmbulo,
apostado em despertar-nos; este livro ditado como uma longa e pungente
confissão, que, uma vez escutada, nos torna testemunhas do processo que um
homem instaura ao seu tempo; este monólogo desesperado, furioso e terno; este
apocalipse ressentido e trágico e, ao mesmo tempo, inocente e utópico. Não sei
colocar num escalão este livro, como agora se tornou imperioso, visto ter
proliferado, em demasia, A apetência pelo rebanho. Quando a literatura se
tornou uma arte de vendas para que servirá uma obra que obstinadamente,
obscenamente, apetecia escrever, faz da literatura uma questão de vida ou de
morte?
Se Pascoaes é, entre todos os
nossos grandes poetas, o mais difícil de recuperar, é também porque a
cinquenta anos da sua morte, ainda não entendemos bem o que era o seu malucar sozinho com as cousas; a fome de cousas inefáveis que ele dizia
ser a sua; a natureza de judeu errante,
atiçada por obsessões e obsessões,
por entendimentos secretos, por mortos que sonham, por nomes confusos que perturbam e por essas
vozes misteriosas que nos entristecem
para sempre.
Habituaram-nos a ligar Teixeira de Pascoaes à saudade, à crença numa
panteísta transcendência, a essa espécie de
anti-Tabacaria, para citar um dos topoi
da nossa modernidade, que é o Marão, ao mundo exterior que nele é mais forte que o mundo interior. Mas
lembrando apenas isso, esquecemos tanta coisa. É que esse Pascoaes interdito
que O Pobre Tolo, de alguma maneira,
vem iluminar.
[…]
Este texto sonâmbulo, uma espécie de meditação sobre que palavra
poderia ser dita depois do fim das palavras, é ainda um quase ver. Mas, como atesta Pascoaes, o quase é o bastante para inundar de trevas a paisagem. Que trevas tão
luminosas, quero dizer». In José Tolentino Mendonça
O Pobre Tolo
A vida é o sonho de um pobre tolo, um fumo a sair duma caveira. O fumo
tolda o espaço e desenha as formas deste mundo e de outros mundos. O fumo do
meu lar nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração
escultora de anjos e fantasmas. Os anjos e os fantasmas pairam sobre o meu lar,
ao cair da tarde... E eu mesmo vou abraçado àquelas figuras, não sei para onde.
Dissolvo-me no Azul, porque eu sou, bem o conheço, uma fantasia do crepúsculo...
Um pobre tolo extasiado no crepúsculo, a ouvir cantar o mocho das suas mágoas e
tristezas. Tudo é o sonho dum pobre tolo. E o pobre tolo é também um sonho, um
sonho de Deus que não encarnou inteiramente. Por isso, ele anda envolvido numa
auréola, e tem a leveza duma nuvem...
Somos um sonho divino que não se condensou, por completo, dentro dos
nossos limites materiais. Existe, em nós, um limbo interior; um vago sentimental
e original que nos dá a faculdade mitológica de idealizar todas as cousas. Este
Limbo é Verbo não encarnado, intacto e divino. Daí, o concebermos a Divindade e
também a imperfeição do nosso ser que não se definiu absolutamente, não
cristalizou em todas as linhas que deveriam marcar a sua integral fisionomia.
Se fôssemos um ser definido, seríamos então um ser perfeito, mas limitado,
materializado como as pedras. Seríamos uma estátua divina, mas não poderíamos
atingir a Divindade. Seríamos uma obra de arte e não vivente criatura, pois a
vida é um excesso, um ímpeto para além, uma força imaterial, indefinida, a alma,
a imperfeição. A vida é uma luta entre os seus aspectos revelados e o limbo em que
eles se perdem e ampliam até à suprema distância imaginável; uma luta entre a
realidade e o sonho, a Carne e o Verbo. Em nós, o Verbo não encarnou
inteiramente. Somos corpo e alma, verbo encarnado e verbo não encarnado, a
matéria e o limbo, o esqueleto de pedra e um fumo que o encobre e ondula em
volta dele, e dança aos ventos da loucura... E aí tendes um pobre tolo
sentimental, uma caricatura elegíaca. Neste limbo interior, neste infinito
espiritual, vive a lembrança de Deus que alimenta a nossa esperança, e transfigura
esse bicho do Demónio, que anda por esses boulevards,
vestido à moda ou coberto de farrapos.
Ardemos num incêndio de esperança, para que reste de nós uma lembrança,
um fumo que sobe e não se apaga. Tudo é memória: um fumo leve, em mil visagens
animadas; ou denso, em formas inertes e sombrias; e, ao longe, a grande
fogueira invisível que os demónios e os anjos alimentam. Vivo, porque espero. Lembro-me,
logo existo. Uma cousa é a lembrança de si mesma e a esperança de outra
cousa; mas conserva, através de todas as variações, o seu desenho essencial. O
homem será sempre o corpo dum macaco esboçado pelo demónio e a alma dum anjo
concluída pela morte. Será sempre o que foi: o conflito de várias forças que se resumem em duas forças: a vida e
a morte; a vida e a sua legião de sombras diabólicas, a morte e a sua teoria de
anjos a cantar. A lembrança e a esperança: avida e o corpo do Universo.
A vida é um duelo entre a lembrança e o esquecimento, o drama da Saudade! O
esquecimento fez a noite, o silêncio e a solidão; mas é na solidão, na noite e
no silêncio que as lembranças tomam vulto, como figuras do Outro Mundo.
Irradiam uma luz que as aproxima e define, e uma sombra que as afasta e
espectraliza. Esta sombra e esta luz confundem-se numa incerta emanação nublosa,
a alma da nossa esperança a modelar-se em corpo de lembrança...» In Teixeira
de Pascoaes, O Pobre Tolo, Prosa e Poesia, Apresentação de Tolentino Mendonça,
Assírio e Alvim, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-37-0589-3.
Cortesia de A. e Alvim/JDACT