As Cortes reduzidas ao silêncio e à inoperância
«(…) Estava quebrada a coesão da classe popular, que, nesse momento
histórico, representava o genuíno espírito nacional de resistência às ameaças
estrangeiras. Logo para eleger os representantes do povo, que deviam permanecer
como consultores, se estabeleceu luta entre os partidários do duque de Bragança
e do Prior
do Crato, ambos empenhados em que seus representantes predominassem
nesse grupo. E os Governadores, sempre muito preocupados em que a ordem pública
não se alterasse, e para que a retirada dos delegados se fizesse espaçadamente
e muito discreta, concederam que as câmaras lhes pagassem os respectivos subsídios
até 10 de Abril. Assim, os partidários de Castela reduziram ao silêncio e à
inoperância o supremo organismo político da nação, Que não logrou concretizar
em decisões claras a iniludível repulsa portuguesa pelo monarca estrangeiro.
Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
Neste breve período, que vai desde a morte do cardeal-rei Henrique (31
de Janeiro de 1580) à data da dissolução das Cortes em Santarém e Almeirim (15 de Março do mesmo ano),
isto é, num lapso de mês e meio, verificaram-se simultaneamente diversos e episódios,
uns mais espectaculares, outros mais discretos, que directa ou indirectamente
viriam a ter a sua influência no curso da história. Um deles foi, sem dúvida, o
passo que o duque de Bragança deu, logo após a morte do monarca, tio de sua mulher,
a infanta D. Catarina, única pessoa pretendente ao trono acerca da
legitimidade da qual não se levantavam objecções válidas. E seria a única que
Filipe II realmente deveria temer, se acaso seu marido dispusesse de força e popularidade
com que pudesse opor-se aos seus planos de absorção.
Quase todos os historiadores nos dizem que, ainda o cadáver do monarca
estava quente, já João, duque de Bragança, se apresentava aos Governadores e Defensores
do Reino para lhes declarar que se sujeitava à decisão dos juízes nomeados para
resolverem o processo da sucessão. O mais curioso, porém, não está na sua declaração,
mas sim nas insinuações de que a acompanhou. Deu a entender, através de frases
dúbias, que, se fosse prejudicado na sua pretensão, lançaria mão de outros
meios para a impor. Ora, não havia outros meios senão a força e o dinheiro. E a
casa de Bragança possuía-os. O duque era o fidalgo mais rico e mais poderoso do
reino. Mas era também, sob aquela máscara de fanfarrão, o homem mais prudente,
hesitante e timorato. Tendo à sua disposição um poder enorme e uma fortuna
fabulosa, vivia no temor de tudo perder numa cartada irreflectida. Ambicionava ver-se
rei, por via de sua mulher, cujos direitos ao trono eram incontestáveis. Não
arriscaria, porém, a sua fortuna e muito menos a sua cabeça para o conseguir.
Toda a gente conhecia a índole indecisa e frouxa do duque, em despeito das
suas atitudes de brigão para a dissimular. Fosse ele um pouco mais ousado, e parte
da nobreza e do alto clero, que ainda o apoiavam sem entusiasmo, e mesmo as
classes populares ter-se-iam reunido em sua volta e preferido ao monarca estrangeiro
o duque de Bragança por ser português, embora as suas faculdades não fossem
brilhantes. Teria consolidado a unidade nacional e com ela impedido o domínio
castelhano, cujo poder militar, mais famoso do que verdadeiro, se esboroaria
contra uma nação decidida a manter a sua independência.
A fanfarronada do duque não intimidou os Governadores, em sua maior
parte já secretamente ao serviço de Castela, nem animou os procuradores às Cortes
nessa data reunidas, como supremo orgão político do reino e legítimo intérprete
da vontade nacional, a elegê-lo rei, inutilizando com uma vassourada enérgica
toda a papelada do processo de sucessão, todos aqueles pareceres de letrados
duvidosos, todas aquelas pérfidas notas diplomáticas. A vontade da nação
erguer-se-ia acima dessa balbúrdia, como nas Cortes de Coimbra de 1385,
em que, proclamando rei João, mestre de
Avis, anularam a legitimidade de D. Beatriz, filha única do monarca Fernando
I e mulher do rei de Castela, e criaram uma nova dinastia, esta mesma que, após
dois séculos deslumbrantes, agonizava agora em
apagada e vil tristeza».
In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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