A Misteriosa Protectora
«(…) Muito do coração vos agradeço a gentileza-disse a dama
carinhosamente. - Nada tendes que agradecer-me. A minha mágoa é que João
Alberto não esteja agora na aldeia para vos mostrar ali dentro da escola com os
seus rapazes, como pai que tivesse sessenta filhos e de todos eles fosse
querido e admirado. Como ele fala aos garotos e as lindas coisas que sabe
contar-lhes! De tal modo, minha senhora, que até os mais pequenos lhas entendem
e sentem!
- Costuma sair daqui frequentemente? - Todos os
dias, depois de dar aula. - Talvez de visita a pessoas das suas relações? – perguntou a dama com a voz um
pouco turbada. - Não, minha senhora.- Vai dar lições particulares de português
e francês, para o curso dos liceus, aos filhos de uns lavradores ricos, uns
cinco, dos que mais podem aqui por estes sítios. Naquela sua tamanha lida, cedo
virá a envelhecer mal empregado!
Corno se a houvessem comovido estas palavras do velho mestre-escola a
dama do véu negro teve um arrepio nervoso que a fez estremecer. - Aceito o
convite - decidiu numa tremura de voz - e seria bondade vossa que me désseis a
honra de ir convosco. Tenho de seguir para longe e receio demorar-me por causa
de minha mãe, uma doente que precisa de especiais cuidados. - Pois não, minha
senhora. Estou às vossas ordens. E se quereis que vossa mãe me dê também a
honra de entrar em minha casa... - Não, muito obrigada. Qualquer coisa a fatiga
e lhe sobressalta o pobre coração amargurado. Irei eu sozinha convosco.
A jovem foi ter com a mãe, murmurou-lhe umas palavras em voz baixa,
ajudou-a a entrar no, automóvel e voltou agilmente para junto do velho Diogo
Silveira. E lá foram os dois para o outro extremo da aldeia. Ficou atónita
aquela espantada gente que se tinha juntado no terreirozito da escola. O Mestre-Velho,
todo ancho com aquela senhora, toda de preto como, enviuvada! Talvez fidalga ou
alguma estrangeira, alguma princesa! Nova e airosa, bem se via que era por
aquele seu passo leve e miudinho como o das andorinhas. E bem podia ser que
fosse lindo como as estrelas aquele seu rosto coberto, de negrumes, como também
às vezes no céu um farrapo de nuvem negra encobre a face resplandecente de uma
estrela.
Mas o que teria o Mestre-Velho com aquela criatura que nunca ninguém
vira ali na aldeia, e para onde iriam os dois, deixando ficar a outra desconhecida,
a velha, muito bem sentada naquela caranguejola roncadora que ali ficara arquejante,
como se estivesse a deitar os bofes pela
boca fora?
Na salita humilde e rústica, onde apenas podiam caber quatro ou cinco
pessoas. Diogo Silveira convidava a desconhecida a sentar-se na mais segura das
suas quatro velhas cadeiras. - Perdoai a pobreza de tudo isto e fazei-me a
mercê de estardes como em casa de um criado vosso. - Por amor de Deus, não
faleis assim! Estarei aqui no desafogo de quem encontra guarida em casa de
pessoa amiga, que o fosse há muitos anos. Levantou o longo e pesado véu e
sentou-se com graciosa gentileza. Maravilhado então com aquele rosto de peregrina
beleza, o Mestre-Velho nem se atrevia a sentar-se também.
Nos grandes olhos negros daquela beldade, que não teria mais de vinte e
cinco anos, havia uma doce e entristecida luz, que suavemente lhe iluminava as
faces de pálida alvura. Seria encantadora aquela pequenina boca vermelha quando
sorrisse na consoladora alegria de viver. Bendito Deus! - exclamava de si para
si, numa expressão de assombro, o pobre do mestre-escola – Nunca em dias de minha vida vi lindeza assim! - Então não vos
quereis sentar, senhor Diogo Silveira?
- Sento, sim, minha senhora - respondeu-lhe ainda com maior acanhamento, como
se tivesse ali diante de si uma desencantada princesa dos velhos contos de
outras eras.
- Falai-me então, do vosso
colega João Alberto, do seu viver, da sua escola, de tudo o que dele souberdes».
In
Campos Júnior, Pedras Que Falam, romance histórico, edição Romano Torres,
Lisboa, 1953.
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