A melhor maneira de chegar a un entendimento do que é a saudade na obra
do Pascoaes passa(rá) pela análise do que singulariza a sua poesia. In
Luís Miguel Nava, 1994
Introdução
«(…) Damos de barato que existem nas duas versões do poemeto sólidas realizações
textuais, de enérgica e incorrompível vibração verbal, ainda hoje capazes de
muita aceleração cardíaca, como aquele estar com o outro estando só, forma
muito arcaica, com os pessoanos tercetos de Belo, do saudosismo de
Pascoaes, mas também temos por seguro que ambas põem à mostra algumas
puerilidades mais superficiais e desnecessárias, que foram aquelas que Pascoaes
quis, definitivamente, sacrificar nas duras aras do terreiro de sua casa quando
ainda brincava aos índios, nas ladeiras de Amarante, com o Nazianzeno atrás
referido, e cujo conhecimento só se justifica numa apurada arqueologia textual
que procure revelar e pôr à luz do sol os fósseis arcaicos e escuros que estão
na origem do riquíssimo oiro verbal dos livros mais maduros de Pascoaes.
A terceira edição do poemeto apareceu muitos anos depois na segunda
edição de Terra Proibida, onde ainda
hoje despercebidamente figura, quase irreconhecível, logo no título, que perdeu
o acento e a preposição inicial, passando a chamar-se tão-só A Minha Alma. Nas duas primeiras versões,
o poema aparecia estroficamente disposto em quadras de dodecassílabos, enquanto
na versão incluída em Terra Proibida,
a sua derradeira e definitiva metamorfose, aparece subdividido em quatro longas
partes de versos curtos e regulares, hexassilábicos, cada um deles parecendo
ser, quando em correlação simétrica, o desdobramento quase perfeito do
dodecassílabo inicial ou anterior, numa aparente continuidade sem estrofes que
se revela depois falsa, a uma leitura mais atenta, capaz de destacar as
estrofes de oito versos em que essa continuidade aparente se organiza. Veja-se
uma das quadras mais relevantes da primeira versão do poema, a vigésima
primeira, uma daquelas capazes de fazer a glória de um principiante com sorte,
e que passou quase inalterada para a segunda versão:
Eu sei que me ensinaste a eu saber chorar,
que fizeste de mim o meu pior amigo...
E a minha solidão desejas-me roubar
que, sempre que estou só, encontro-me contigo!
Leiam-se agora os oito versos correspondentes do poema incluído em Terra Proibida e que, mantendo sempre o
mesmo esquema de significação profunda, muito devedor daquele erotismo da alma
que vimos a propósito da écloga de 1896
(e a classificação do género, se a é, não me pertence; é de Pascoaes no já
aludido prefácio à terceira edição do Sempre),
alteram, porém, o léxico, a métrica e a rima, num processo de desmembramento
irreversível da superfície textual. Eis o resultado:
Por ti acordo e rezo
e fico a meditar...
E fizeste de mim
o meu pior amigo.
A minha solidão
desejas-me roubar,
que sempre que estou só,
encontro-me contigo!
As relações de intertextualidade entre o opúsculo de 1898 e o poema da segunda edição de Terra Proibida são muito mais vastas, profundas
e solitárias que a assacada irreconhecibilidade entre ambas poderia deixar
antever. Bom número de quadras do poema de 1898
desdobra-se, caprichosamente, no de 1917,
em estrofes virtuais de oito versos, com rima no segundo e sexto, quarto e
oitavo, ficando brancos os restantes, num esquema versificatório que se não foi
inteiramente característico de Pascoaes, foi dele suficientemente representativo
para receber e muito antes desta reedição, os magnânimos conteúdos daquela Elegia, de Vida Etérea (1906), que alguns consideraram e
continuam a julgar o mais antologiável poema do autor, o que me parece forçado,
se não despropositado, e que foi depois popularizada como Elegia do Amor (1921; 1924), o que até nem está mal
e reforça em muito aquela alegria acompanhada, quer dizer plena, que é possível
arrancar sem esforço, de toda a solitária e outonal tristeza, outro modo de
dizer o diagrama chinês a preto e branco, que é talvez aquilo que mais
interessa, como alquimia ou pedra filosofal, de toda a andança verbal do Pascoaes
poeta, pelo menos do Pascoaes poeta em verso». In Teixeira de Pascoaes, Belo, À
Minha Alma, Sempre, Terra Proibida, introdução de António Cândido Franco,
Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 972-37-0429-3.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT