O Comércio do Invisível
«(…) Leonor Meneses fez um trejeito de desagrado por intromissão tão
atrevida; sabia-lhe a descaro a portuguesa língua traçada assim pela soberba do
latim. As duas meninas não se desentendiam mais, porque uma se mostrava onde a
outra se escondia. Mal a Teles porém deixava o céu escuro e retirado onde
vivia, a luz petulante da outra Leonor tremia, incomodada e mal-humorada. O
cónego por sua vez deu em ficar pensativo. Aquela Leonor mostrava entendimento
a mais, para ser apenas fria ou sisuda.
No outro dia vieram ao paço de Barcelos o arcebispo de Braga e o prior
do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, que tinha casa em Leça, a menos de dez léguas
de Barcelos, e estivera ligado à criação de Guiomar Pacheco e ao seu casamento
com João Afonso Telo. Chamaram-na ao estrado onde o conde costumava receber os
seus contiados, mas nada conseguiram tirar dela. A pequena Leonor viera oculta
na sua capa escura, o rosto protegido na mantilha de sombra. Envolvia-a um
escudo de silêncio que nenhuma palavra do arcebispo ou do prior obteve atravessar.
O silêncio, quando não acontece por acidente, é tão impenetrável como a treva e
tão isento como coisa nenhuma.
Guiomar, que conseguira trazer a sobrinha com algum esforço à presença dos
dois homens, desculpou-se. - É uma
donzela bravia, que não cura de atenções nem de falas. Descuidai dela, senhores.
Desinteressaram-se do caso, mas cada um ficou ciente que a filha de Martim
Afonso Teles, além de contrastar com primos e irmãos, cujas manhas eram conhecidas
e comentadas com benevolência, guardava dentro de si alguma discrição. Logo se
veria se o caroço que dentro dela se escondia valia ou não a ingressão num
mosteiro de religiosas. Tratava-se duma filha segunda e só lhe restava no porvir
próximo dois caminhos, ou o casamento fora de casa, com um rico-homem da sua
condição, ou o noviciado e os votos numa casa de religiosas.
Que se passava porém no
interior daquela menina? Na verdade nada se passara até ao momento em
que o cónego de Braga começara a vir às tardes, no meio das religiosas que
velavam, apresentar as suas histórias. Era tão-só um ser que não dava conta de
si e do mundo; vivia numa meia obscuridade, que era a razão neutra da sua não
existência. E o não existir da menina traduzia-se e concentrava-se na essência
olorosa que ela um dia surpreendera num escuro recanto da copa da tia e que
sempre regressava mais possante ao seu ser. Se mais tarde lhe tomassem uma
recordação desses primeiros dias de Barcelos, ela só lembraria a fragrância
inebriante em que se apagava. Não era de somenos, porque se lhe pedissem então que
a definisse, ela diria com sentida surpresa: - Felicidade!
Depois que o cónego chegara, sentira a menina agitar-se dentro de si um
mar encapelado, que foi o primeiro sinal da sua vida íntima, o acordar da sua essência.
Aqueles relatos sobre as primeiras alvoradas do mundo, com as gerações de Adão
povoando a Terra do castigo, depois de abandonarem as plagas do Paraíso,
abalaram o seu ser e despertaram nele correntes fortes e desencontradas, que,
ao porem-se em movimento, embateram com estrépito umas nas outras. Estavam em
construção os corredores da sua alma; notavam-se-lhe altas arcadas, que cavavam
naquela novidade estradas largas. Em breve, por esse amplos respiradouros,
galgariam, poderosos e velozes, caudais inúmeros, torrentes de pura energia
invisível. Os motivos do cónego de Braga nada mais eram que os catalisadores
que actuavam junto de Leonor como poderosos agentes do seu despertar.
O primeiro resultado dessa convulsão foi um perturbante choque da
memória. Viu de sopetão a memória escancarar diante de si os seus pesados portões
de ferro, até aí cerrados. Sobrou-lhe, nu, sem véus, todo o passado recente.
Cor, espessura, peso, brilho, tudo lá estava como se esse mundo fantasmático
fosse feito de matéria e tivesse a nitidez da realidade física do presente.
Presenciou o momento em que a rainha-mãe de Castela fugira apressada de Toro,
depois do pai, Martim Afonso Teles, cair assassinado pelas frechas ervadas dos
besteiros e o corpo ser recolhido, a medo, em branca mortalha, pelos cavaleiros
da rainha. Recordou a viagem e a agonia em Évora da sua real protectora,
envolvida num lençol branco, boca descarnada, bubão entalado na garganta, olhos
sumidos e baços. Assistiu depois à viagem do préstito do infante em direcção de
Santarém, onde a rainha o esperava com os filhos de Inês e de Constança.
Esforçando um pouco a visão, era capaz até de seleccionar, no meio dessa
espiral infinita de momentos e sucessos, o seu próprio nascimento. Lá estava a
mãe, Aldonça Vasconcelos, nos braços de duas servas vestidas de burel, numa
câmara severa do paço de Zamora, gemendo pontadas dolorosas e suando perlas
geladas».
In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições
Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT