A Montagem de uma Conspiração.
Debates
de Comando e Direcção
«A experiência de hegemonia governativa de Costa Cabral, iniciada
em Fevereiro de 1842, com a restauração
da Carta Constitucional, apresenta um
significado decisivo na maturação política e institucional do liberalismo em
Portugal e na definição dos processos e formas de resistência que o mesmo
sistema envolve. Com efeito, este período balizado entre a restauração da Carta e a revolta
da Maria da Fonte (Março de 1846) constitui um momento essencial
na construção do Estado contemporâneo, dotando-o de uma efectiva capacidade de
intervenção nas áreas regionais, através de procedimentos uniformes de controlo
fiscal e administrativo até então inexistentes. O país local não tinha sentido
ainda os grandes efeitos da instalação do liberalismo. As populações tinham-se
estabilizado em padrões duráveis de vida, prestígio e hierarquia que, na sua
rotina, quase ignoravam os ritmos do país político. E nestas áreas que o
liberalismo autoritário cabralista vai fazer sentir, pela primeira vez, o peso
do Estado como instância reguladora da vida quotidiana e susceptível de
calcular com algum rigor os rendimentos colectáveis.
O Código Administrativo de 1842,
o sistema da repartição no cálculo do imposto predial (19 de Abril de 1845)
e a lei de saúde pública (26 de Novembro de 1845), são exemplos da
mesma orientação, norteada pela ideia da eficácia e racionalidade do poder do
Estado, cuja debilidade funcional impedia, até aí, uma presença sistemática e
ordenada na vida portuguesa. A forma como o país, nas suas diversas correntes
de opinião, encarou a ordem
cabralista reveste a maior importância experimental, uma vez que além das
habituais divergências doutrinárias obrigou a uma definição clara de
alternativas de governo através de uma exposição programática de objectivos e
meios de realização.
A anulação do decreto de 10 de Fevereiro de 1842 que previa a reforma da Carta Constitucional, a ser realizada
na legislatura imediata, em que os deputados teriam poderes constituintes,
seria um dos argumentos decisivos da resistência liberal ao cabralismo.
Serviria, inclusivamente, para justificar a malograda Revolta de Torres Novas (1844) e o aproveitamento político da revolta da Maria da Fonte. A força e
convicção do regime, o seu dispositivo de vigilância e contenção das oposições
conduziu estas últimas a um esforço unitário de luta contra o governo. Estão
ainda por estudar os hábitos e processos políticos da época, nomeadamente o uso
da violência ou da pressão armada usada quer pelo governo, quer pela oposição.
Tais processos de persuasão apontam-nos para uma forma específica de vivência
local dos fenómenos políticos, em que a direcção da vida pública é disputada
por grupos de cidadãos de comportamento mais ou menos violento, arregimentados
pelos notáveis dos diversos sectores de opinião. É esse o território efectivo
das lutas políticas. As formas de propaganda, embora pudessem incluir algumas
expressões colectivas e públicas (imprensa, reuniões, etc.), assentavam, de
forma determinante, nos contactos pessoais, na sondagem das influências. O
caciquismo era a expressão quotidiana desta realidade.
Neste sentido os actos eleitorais, aliás indirectos, apresentam uma forma
especial de representatividade: não é apenas uma questão de maioria
propriamente dita, mas de força, de eficácia dos notáveis políticos e dos seus
grupos de agitação. O ambiente em que estes actos eleitorais decorrem acaba por
ter um peso significativo. É este o cenário onde actuará a chamada coalisão oposicionista que, nas eleições de 1842, combatia o
ministério Terceira-Cabral. A participação dos miguelistas nesse conjunto,
juntamente com os setembristas e cartistas moderados enuncia a presença
de uma atitude da parte dos primeiros que, sem ser inédita, define um foco de
divergência no campo miguelista.
Deve dizer-se desde já que essa forma de resistência no interior do sistema
não era aquela que melhor representava a atitude mais autêntica que a proposta
miguelista, na época, envolvia ou prefigurava. Na verdade o problema não
residia na cooperação política com os setembristas, a qual já
anteriormente (1840) se tinha verificado, mas no modo como eram encaradas as
eleições. A ideia de concorrer para o reforço da presença eleitoral dos setembristas
não oferecia dúvidas no campo miguelista, uma vez que essa postura contribuía
para o enfraquecimento dos beneficiários mais ávidos do sistema, os cartistas.
Essa colaboração era, para os defensores do monarca Miguel, tomada como tendo
um carácter nacional e patriótico,
dada a relativa subalternidade dos homens
de Setembro na dinâmica liberal triunfante e a probidade moral dos seus
dirigentes mais significativos». In José Brissos, A Insurreição Miguelista nas
Resistências a Costa Cabral (1842-1847), Faculdades de Letras de Lisboa,
Edições Colibri, 1997, ISBN 972-8288-80-8.
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