«(…) Só o explica o costume, reverendo padre, meu irmão no Senhor São
Francisco de Assis. Mas toda a gente sabe que esta manhã se abriu uma greta na
rua do Pez por onde saíam os cheiros do inferno. - E quais são, reverendo padre,
esses cheiros? - Se havemos de
acreditar no que diz a tradição, cheiro a enxofre, nem mais nem menos. - Dizem
que é um cheiro saudável, e sei de muitos lugares onde se usa pare desinfectar
o ar de espíritos malignos. Os demónios não lhe resistem, por isso o lançam
para fora do inferno assim que surge uma oportunidade. O caso da rua do Pez terá
sido efeito de uma dessas ventilações. - E é para falar do enxofre que me visita
tão de manhãzinha, padre Villaescusa?
- Não me teria atrevido, Excelência, a incomodá-lo por tão pouco, sobretudo
quando as causas são do domínio público. Mas sucedeu uma coisa esta noite que
justifica a minha visita tão madrugadora, e esta impertinência de vir com
questões graves ao domingo. Posso
falar sem reservas?
- O que se diz nesta sala, o que
nela se ouve, é segredo de confissão. - Isso tranquiliza-me. Pois o caso
conta-se em poucas palavras: Sua Majestade foi às pu… a noite passada. O
Inquisidor-mor sobressaltou-se, mas o padre Rivadesella limitou-se a sorrir. - Que me diz? - O que já sabe
toda a gente no palácio, Excelência, o que começa a saber-se na cidade. O
Inquisidor-mor meneou a cabeça com gravidade doutoral. - A esse rapaz, teriam
que vigiar-lhe as companhias. - De que maneira, Excelência, se no palácio há
saídas secretas e servidores
corruptos? E também há, e a isso venho principalmente, um confessor do
Rei octogenário e de vista grossa, que perdoa tudo com as mais leves penitências
e que, como toda a gente sabe, é tolerante com os pecados da carne, se calhar,
e Deus me perdoe se penso mal, porque ele os cometeu.
- Ele, nesse caso, é o Rei, não
é assim, padre Villaescusa? O
capuchinho sentiu-se incomodado com o olhar do Inquisidor-mor, e baixou a
cabeça. - Evidentemente, Excelência. Era ao Rei que me referia. Mas não
deixarei por isso que se perca no esquecimento a questão do confessor. Recordo
a Vossa Excelência que se chama padre Pêrez de Valdivielso, um converso, sem
dúvida. O Inquisidor-mor tornou a meditar, brevemente. - Os judeus não se
caracterizam pela sua tolerância. Recorde o meu antecessor Torquemada (Tomás
de Torquemada, 1420-1498. Inquisidor-mor de Castela e Aragão a partir de 1483,
foi o organizador da instituição em Espanha, que dirigiu até à sua morte; judeu
converso, distinguiu-se pelo seu zelo brutal e doentio,3000 execuções).
- Os judeus, Excelência,
pretendem a destruição dos reinos de Espanha, e nada melhor do que começar pela
sua cabeça. - Pela cabeça dos judeus,
padre Villaescusa? Desconheço-a. - Fez uma pausa e olhou para os
frades. – Já ouvi falar do Grande Sanedrim, mas creio que são lendas. -E o
Grão-turco, também o é? - O
Inquisidor-mor tinha começado a brincar com uma pena de faisão cortada para a
sua escrivaninha de prata repuxada, obra, inegavelmente, de mouriscos.
- Não, certamente; mas o perigo
não vem daí. - Com efeito, Excelência: o perigo vem-nos da Inglaterra, da
França, dos Países Baixos, da Alemanha, e da Turquia, além disso. Mas
quem senão os judeus os move a todos
contra nós?
O padre Rivadesella, que estava calado havia um bom bocado, interveio: -
Contra si e contra mim, padre
Villaescusa? Porque suponho que deixará de fora dessa conspiração o
Senhor Inquisidor. – Quando disse nós, quis dizer as Espanhas - respondeu com
ênfase o capuchinho; e os outros exclamaram: - Ah! A manhã tinha-se posto quente e mesmo naquele salão, protegido
por grossas paredes, fazia calor. Ao padre Villaescusa escorriam-lhe até à
barba, onde ficavam a tremelicar, as gotas de suor. Ao padre Rivadesella, como
estava barbeado, não lhe passavam das faces: ali se acumulavam, dali exalavam o
seu fedor. Quanto ao Inquisidor-mor, a esse não lhe suava nada visível, o que
lhe permitia manter-se respeitavelmente quieto; talvez também com o espírito razoavelmente
frio. Fosse como fosse, o padre Villaescusa tinha ousado puxar de um lencinho de
cor esverdeada e enxugava e testa».
In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei
Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho,
1992, ISBN 972-21-0708-9.
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