Vivemos numa época em que os homens, impelidos por medíocres e
selvagens ideologias, têm vergonha de tudo. Vergonha de si próprios, vergonha
de ser felizes, de amar e criar (...). Portanto, há razões para nos sentirmos
culpados. Eis-nos arrastados para o confessionário laico, o pior de todos». In Albert
Camus
Os Propagandistas do Estigma
O irremediável e o desânimo
«Todos nos odeiam e bem o merecemos: tal é a convicção de maioria dos
Europeus, pelo menos no Ocidente. De facto desde 1945, os tormentos do arrependimento dominam o continente. Remoendo
as abominações de outrora, as guerras, as perseguições religiosas, a escravatura,
o imperialismo, o fascismo e o comunismo, a Europa vê na sua longa história
apenas uma sucessão de mortandades e pilhagens que conduziram e dois conflitos
mundiais, ou seja, a um suicídio entusiasta. Horrores inigualáveis, a
industrialização da morte em grande escala nos campos nazis e soviéticos, a
promoção de saltimbancos sanguinários à categoria de ídolos apoiada pelas
massas, a experiência do mal extremo transformado em ruína burocrática: eis o
saldo.
E as maiores virtudes, o trabalho, a ordem, a disciplina, colocadas ao
serviço de fins terríveis, o descrédito da ciência, a cultura achincalhada nas
suas pretensões, o idealismo deturpado. A Europa, semelhante a um boxeur atordoado, entontecido pelos
golpes que desferiu, sente-se confundida por perversidades insuportáveis. Não
há uma única nação, a ocidente ou a oriente deste pequeno cabo asiático, que
não tenha de fazer o seu exame de consciência e cuja história não esteja repleta
de cadáveres, calabouços, torturas e excessos, Tantas obras sublimes, tão
elevadas metafísicas, tantas filosofias delicadas redundaram em guerras civis,
ossadas, câmaras de gás e gulags.
A Europa combinou de forma inédita o pensamento calculista e o
assassinato, construindo metódica e sistematicamente uma máquina de
desumanização que conheceu o seu apogeu no século XX. Na civilização europeia
esconde-se um malefício que corrompe o seu sentido e ridiculariza a sua grandeza.
Os píncaros do pensamento, da música, da arte e de tanto luxo inútil e trágico têm
por corolário os abismos da abjecção.
Em 1955, na obra Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss
recorda com consternação, a propósito dos Índios do Brasil, a monstruosa e incompreensível catástrofe
que foi, para uma vasta e inocente parte da humanidade, o desenvolvimento da
civilização ocidental. Esse sentimento de repulsa é ainda hoje testemunhado
por inúmeros viajantes e teóricos. Quarenta anos depois de Lévi-Strauss
a mesma constatação perdura: Devemos
pedir perdão por tanto, explica o filósofo Jean-Marc Ferry. Devemos relembrar com um olhar crítico as
violências e as humilhações que infligimos a povos de todos os continentes para
que triunfasse a visão europeia da humanidade e da civilização. Eis
outro lamento de um estudioso da história da Argélia: Os Franceses nunca encaretem a culpa como parte integrante da sua
história.
E Edgar Morin, numa série de conferências em 2005, vê na Europa pacificada, e só nela, o fermento de uma hipotética
barbárie: Devemos pensar a barbárie
europeia para que possamos ultrapassá-la pois algo pior é sempre possível. No seio
do deserto ameaçador da barbárie, gozamos por enquanto da relativa protecção de
um oásis. Mas sabemos também que reunimos condições históricas, políticas e
sociais que fazem prever o pior, particularmente em períodos paroxísticos.
A Europa é a enferma do planeta e contagia-o com a sua pestilência: eis o que
todos os territórios europeus devem ter ciente. À questão quem é culpado?, no sentido metafísico do termo, a vulgata
responderá naturalmente: nós. O
Ocidente, a aliança entre o Velho e o Novo Mundo, é uma máquina descontrolada e
sem alma que colocou a humanidade ao
seu serviço». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la
Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle,
2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN
978-972-1-05943-6.
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