Os Propagandistas do Estigma
O irremediável e o desânimo
«(…) Vive agora o momento da vingança
das cruzadas, (sic) e quer
disseminar as suas paixões desenfreadas. É a culpada de todas as
monstruosidades em Africa, na Ásia ou no Médio Oriente: O Terceiro Mundo é o produto final das paixões provocadas pelo jogo
desregrado da concorrência descontrolada. Na origem dos inúmeros e absurdos
massacres no Terceiro Mundo, que semeiam o pânico nas choças e confirmam a
convicção da barbárie do Outro, estão as frustrações criadas pelo Ocidente. Os
exemplos são incontáveis: do pacífico Camboja mergulhado num genocídio inaudito
na sequência da intervenção americana até ao Irão privado da sua revolução burguesa
de Mossadegh por uma intervenção anglo-americana, passando pelo terrorismo cego
dos raptos, usurpações e tomada de reféns em nome do pesadelo do Médio Oriente?
O extermínio está no cerne do
pensamento europeu, e o seu imperialismo é um processo biologicamente necessário que, segundo as leis da
natureza, conduz à inevitável eliminação das raças inferiores. Se o
Ocidente produziu apenas computadores
à custa de pessoas que morriam de fome e sofriam de carências, a
conclusão impõe-se; devemos resistir por todos os meios ao seu poder
desagregador.
A ideologia vacila
A Europa dividida: o anti-ocidentalismo, sabemo-lo, é uma tradição
europeia que vai de Montaigne a Sarte e induz o relativismo e a
dúvida nas consciências tranquilas e cientes dos seus direitos. Nesse tempo,
ere necessária uma certa audácia para, tal como Las Casas, denunciar a barbárie
dos Conquistadores ou a missão civilizadora das grandes potências na época dos impérios.
Actualmente, para atacar a Europa, basta apenas um certo seguidismo. Assim, em 1925, em plena guerra do Rif, em Marrocos,
conduzida pelas tribos rebeldes de Abd el-Krim contra as tropas francesas e
espanholas, Louis Aragon, então com vinte e oito anos, pronuncia em
Madrid, perante uma plateia de estudantes, uma conferência impetuosa e tão
inflamada como insensata: Teremos sempre
razão. E à primeira arruinaremos esta civilização que vos é querida, onde vós
estais presos como fósseis no xisto. Mundo ocidental, estás condenado à morte.
Somos os derrotistas da Europa... Que o Oriente, o vosso terror, responda por
fim à vossa palavra. Em toda a parte faremos frutificar as sementes do caos e
do descontentamento. Somos os agitadores do espírito. Todas as barricadas são
úteis. Todos os entraves à felicidade são malditos. Judeus, saí dos guetos. Que
se mate o povo à fome para que ele sinta por fim o gosto do pão e da cólera,
Subleva-te, Índia dos mil braços, grande Brama lendário. Egipto, é a tua vez! E
que os traficantes de droga arremetam contra os nossos países aterrorizados...
Subleva-te, povo! Vede como esta terra está seca e é propícia a fogos. Dir-se-ia
palha. Riam à vontade. Daremos sempre a mão ao inimigo…
Quarenta anos depois, a mesma ideia é formulada prosaicamente como se
de um dado irrefutável e oficial se tratasse: congratulando-se por ver que em
toda a parte cresce a oposição à influência europeia, o economista e filósofo Serge
Latouche afirma que a morte do
Ocidente não será necessariamente o fim do mundo. Será, ao invés, a condição para a manifestação de novos
mundos, para uma nova civilização, para uma nova era. Entretanto e contestação
degenerou em automatismo, o regozijo destruidor enredou-se na linguagem do frio
burocrata.
É impossível e este respeito não ter um estranho sentimento de déjà vu, como se os lemas repisados dos
anos 60 nos assombrassem de novo. Seria desconhecer um ponto fundamental: tal como
a ideia comunista se torna novamente sedutora à medida que a recordação da ex-URSS
se esfuma, o terceiro mundo floresce de novo sobre o esquecimento do maoísmo,
dos khmers vermelhos, das guerrilhas
sul-americanas. É realmente a falência destas utopias concretas que explica o
ressurgimento da doutrina, repentinamente desligada da experiência. As
ideologias nunca morrem. Metamorfoseiam-se e renascem com uma nova aparência
quando as julgávamos enterradas para sempre: ao invés de ser um elemento de dissuasão,
o fracasso reaviva o arrebatamento. Ao rosto consternado do colonizado sucedeu
o rosto sofredor do descolonizado que, há quatro décadas, coleciona desilusões
e fiascos: o Grande Timoneiro e os setenta milhões de mortos sob o seu regime, os
massacres de Pol Pot, a repressão vietnamita e o êxodo dos boat people, a ditadura de Saddam Hussein, a loucura obscurantista
dos mollahs no Irão,o fascismo cubano,
a guerra civil argelina, sem ter em conta a corrupção, o empobrecimento, a fraude
e o nepotismo». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le
Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do
Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
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