quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Que diferença há entre os cultos pagãos de deuses e heróis e o culto de santos e de relíquias? E, à haver acerto, qual será a religião mais acertada? Não andou Deus com mais juízo junto dos muçulmanos?»

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«(…) Fez el-rei uma robusta fortificação, uma torre de defesa e de atacar, de prender e abusar. No piso inferior ao da casamata, feita muito a preceito, com chão de piso inclinado, ao centro um pequeno claustro a arejar e a servir de chaminé quando há fumos de pólvora, e no piso inferior e abaixo dela escondem-se nessa torre feias masmorras, sítio pavoroso aonde puseram o sábio e forte judeu Josef Levi, cujo crime maior era ter convivido com cristãos de mais e a todos ter confessado que só acreditava no poder da Tora e em mais nenhum. - Senhor, quanto tempo passará até que possa descansar sob a terra? - perguntava ele todos os dias na sombra das entranhas de pedra das masmorras, no buraco abaixo do nível das águas onde o tinham posto, húmido, acanhado, tortura sobre todas as torturas.
Lançavam para as masmorras, todos os dias, mais prisioneiros, lançavam-nos do alto e por um alçapão, vinham seus ossos já quebrados, mas os que restavam partiam-se-lhe na queda, e ali ficavam a penar de dores e condição. Na maré cheia há sempre infiltrações e ficam com água pela cintura, então os que não podiam levantar-se eram agarrados pelos outros, mas se a maré tardava em baixar às vezes faltavam as forças, e era difícil manter de pé homens de rastos, chegaram a morrer afogados alguns deles e em tão pouca fundura que é mais triste ainda.
Junto das masmorras há um paiol, destinado a guardar as munições da torre, e o cheiro de misturas é terrível, porém a condição humilhante deste prender é bem pior do que todos os fétidos aromas. Josef morria um pouco todos os dias, perdia aos poucos o consolo das palavras e ideias, interrogava ao seu deus porque o não queria, ou porque o queria assim em águas turvas de vida a desfazer-se. Tinha fé, Josef, desde cedo. Mas o que é isso de fé e de religião, pensava, agora, um beco sem saída só de mistérios, para onde corre o espírito ao menor sinal de uma fraqueza? Deus só pode ser conhecido intuitivamente e a razão é incapaz de provar a sua existência, o homem deve contentar-se com o que lhe ensinam a fé e a revelação, era o que lhe tinham dito sempre...
Ensina um artigo de fé, que Deus assumiu a natureza humana, e foi isso que nos perdeu, porque os homens e os deuses nunca foram semelhantes, a uns basta a raiva e o amor, aos outros parece nada bastar... Mas Deus podia ter-se manifestado sob a forma e não sob a natureza. Podia ter-se manifestado como asno, ou pedra, ou madeira, ou vulcão ou vento, como até houve antigos que assim julgavam. Então seria mais fácil acreditá-lo... Talvez por isso, os cristãos se agarrem tanto ao martírio, às relíquias e aos seus santos, não querendo ver um mas muitos deuses, não lhes chegando a ideia mas querendo-a em material, palpável, provas de inventário de milagres... Que diferença há entre os cultos pagãos de deuses e heróis e o culto de santos e de relíquias? E, à haver acerto, qual será a religião mais acertada? Não andou Deus com mais juízo junto dos muçulmanos?
Não subiu Maomé às portas do céu, arrastado para a escada pelo anjo Gabriel, e, chegado diante de Alá ficou a saber, pelos próprios lábios deste, que foi escolhido antes de todos os outros profetas e que ele, Maomé, é o seu amigo? Deus confiou-lhe o Alcorão que valor tem de menos que uma Bíblia ou que uma Tora? E confiou-lhe mais: uma certa ciência esotérica, que Maomé não devia comunicar aos fiéis. O mistério não deve ser revelado... e então? Não adoro o que adorais; não adoram o que eu adoro! É o que todos os deuses parecem querer dizer a quem os segue... Maomé deixou explícito: o mundo árabe possui o seu templo e este é mais antigo que o de Jerusalém.
Que crédito tem a religião junto de Deus? O da antiguidade? É mais importante estudar a Tora, como consagrava já no século primeiro Jokhanan ben Zaccai, o mais famoso dos rabis, ou seguir a Míxena, a repetição, que explica as práticas de culto e as questões jurídicas e as interpretações das Escrituras, obra feita pelo rabi Judá, o príncipe, o patriarca do sinédrio? Não será muito mais completo o Talmude, completando a Míxena pela agada, a colectânea de ensinamentos éticos e religiosos das especulações metafisicas e místicas e dos rituais folclóricos? Ou faltar-nos-á um gaon, um chefe, um mestre espiritual e árbitro político que represente o povo diante de Deus mas sobretudo diante das autoridades dos homens?»

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

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