«(…) Fez el-rei uma robusta fortificação, uma torre de defesa e de
atacar, de prender e abusar. No piso inferior ao da casamata, feita muito a preceito,
com chão de piso inclinado, ao centro um pequeno claustro a arejar e a servir
de chaminé quando há fumos de pólvora, e no piso inferior e abaixo dela escondem-se
nessa torre feias masmorras, sítio pavoroso aonde puseram o sábio e forte judeu
Josef Levi, cujo crime maior era ter convivido com cristãos de mais e a todos
ter confessado que só acreditava no poder da Tora e em mais nenhum. - Senhor,
quanto tempo passará até que possa descansar
sob a terra? - perguntava ele todos os dias na sombra das entranhas de
pedra das masmorras, no buraco abaixo do nível das águas onde o tinham posto,
húmido, acanhado, tortura sobre todas as torturas.
Lançavam para as masmorras, todos os dias, mais prisioneiros,
lançavam-nos do alto e por um alçapão, vinham seus ossos já quebrados, mas os
que restavam partiam-se-lhe na queda, e ali ficavam a penar de dores e condição.
Na maré cheia há sempre infiltrações e ficam com água pela cintura, então os
que não podiam levantar-se eram agarrados pelos outros, mas se a maré tardava
em baixar às vezes faltavam as forças, e era difícil manter de pé homens de
rastos, chegaram a morrer afogados alguns deles e em tão pouca fundura que é
mais triste ainda.
Junto das masmorras há um paiol, destinado a guardar as munições da
torre, e o cheiro de misturas é terrível, porém a condição humilhante deste
prender é bem pior do que todos os fétidos aromas. Josef morria um pouco
todos os dias, perdia aos poucos o consolo das palavras e ideias, interrogava
ao seu deus porque o não queria, ou porque o queria assim em águas turvas de
vida a desfazer-se. Tinha fé, Josef, desde cedo. Mas o que é isso de fé
e de religião, pensava, agora, um beco sem saída só de mistérios, para onde
corre o espírito ao menor sinal de uma
fraqueza? Deus só pode ser conhecido intuitivamente e a razão é incapaz
de provar a sua existência, o homem deve contentar-se com o que lhe ensinam a
fé e a revelação, era o que lhe tinham dito sempre...
Ensina um artigo de fé, que Deus assumiu a natureza humana, e foi isso
que nos perdeu, porque os homens e os deuses nunca foram semelhantes, a uns
basta a raiva e o amor, aos outros parece nada bastar... Mas Deus podia ter-se
manifestado sob a forma e não sob a natureza. Podia ter-se manifestado como asno,
ou pedra, ou madeira, ou vulcão ou vento, como até houve antigos que assim
julgavam. Então seria mais fácil acreditá-lo... Talvez por isso, os cristãos se
agarrem tanto ao martírio, às relíquias e aos seus santos, não querendo ver um mas
muitos deuses, não lhes chegando a ideia mas querendo-a em material, palpável,
provas de inventário de milagres... Que diferença há entre os cultos pagãos de
deuses e heróis e o culto de santos e
de relíquias? E, à haver acerto, qual será a religião mais acertada? Não andou Deus com mais juízo junto dos muçulmanos?
Não subiu Maomé às portas do céu, arrastado para a escada pelo anjo
Gabriel, e, chegado diante de Alá ficou a saber, pelos próprios lábios deste,
que foi escolhido antes de todos os outros profetas e que ele, Maomé, é o seu amigo? Deus confiou-lhe o Alcorão que valor tem de menos que uma Bíblia ou que uma Tora? E confiou-lhe mais: uma
certa ciência esotérica, que Maomé não devia comunicar aos fiéis. O
mistério não deve ser revelado... e
então? Não adoro o que adorais;
não adoram o que eu adoro! É o que todos os deuses parecem querer dizer a quem
os segue... Maomé deixou explícito: o
mundo árabe possui o seu templo e este é mais antigo que o de Jerusalém.
Que crédito tem a religião
junto de Deus? O da antiguidade?
É mais importante estudar a Tora,
como consagrava já no século primeiro Jokhanan ben Zaccai, o mais famoso
dos rabis, ou seguir a Míxena, a
repetição, que explica as práticas de culto e as questões jurídicas e as
interpretações das Escrituras, obra feita pelo rabi Judá, o príncipe, o patriarca do sinédrio? Não será
muito mais completo o Talmude, completando
a Míxena pela agada, a colectânea de
ensinamentos éticos e religiosos das especulações metafisicas e místicas e dos rituais folclóricos? Ou
faltar-nos-á um gaon, um chefe, um
mestre espiritual e árbitro político que represente o povo diante de Deus mas
sobretudo diante das autoridades dos
homens?»
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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