Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) O fazedor de crónicas, o ordenador de histórias não era, no
período medieval, proprietário daquilo que escrevia; não era dono do seu
produto; não podia dispor dele livremente a seu bel-prazer (ninguém o
impediria de usar de borrões e de cópias de trabalho). O texto que nascia
da sua mente e da sua boca e ditava aos copistas na livraria constituía
propriedade do senhor que o empregava. Substituído ele na função, outro serventuário
do senhor poderia utilizar sem rebuço os materiais aí acumulados. Recorde-se
que a primeira função de Fernão Lopes foi a de escrivão dos livros de Duarte quando infante. Este meu arrazoado
levanta o problema de saber onde começa e acaba Fernão Lopes e ainda o de questionar
se à consciência individual e colectiva da época se levantava com a pertinência
de hoje a questão da originalidade e do plágio. Nos dias de hoje, em condições
sociais diferentes, como se levanta este problema ao historiógrafo e ensaísta da História? O historiador
contemporâneo é profundamente devedor, terrivelmente devedor do trabalho das
gerações que o antecederam, mais devedor ainda que os próprios cronistas
medievais até porque a herança é cada vez mais vasta. Deve a língua e o resto; deve
os conceitos e a quase totalidade da informação, cada vez mais avassaladora. A
ele o esforço de a apanhar no chão inesgotável, de a reunir e ordenar, de
reescrever e inventar, por caminhos trilhados, o seu fio pessoal de ideias e de
imagens. Mas o investigador terá de citar rigorosamente as fontes das suas
informações, terá de identificar os autores e as ideias novas de que se serve.
As citações de Fernão Lopes não satisfazem o rigor da metodologia
moderna. Quando cita um autor, em geral, é para o contestar. Esta prática
confirma, aliás, o que há pouco dissemos: era então legítimo utilizar o trabalho
anteriormente realizado, que não pertencia aos autores mas ao senhor,
procurando-se que a nova síntese contivesse mor
parte de verdade. (Pensamos que é mais a esta situação de o autor da
História não ser dono do seu produto, de tentar aproximar-se cada vez mais da
verdade, e não tanto a dogmatismo, que devemos interpretar certas expressões,
próprias deste notário dos arquivos régios: danamos
e temos por falsas todas as opiniões que com este volume não conferem). Mas
ao referir as dificuldades do seu trabalho pessoal, ao citar fontes subjacentes
ao seu trabalho como os escritos de Martim Afonso Melo, Pedro Lopes Ayala,
Doutor Christophorus, Fernão Lopes assume, tem consciência do seu papel de
criador, de inventor da verdade oculta no escorregamento
dos tempos. Uma última nota que tem a ver com este trabalho mesteiral. O
artista maior quando afeiçoa matéria-prima, e até, trabalho alheio, fá-lo
ganhar nova força, trá-lo para o largo da criação e da arte. O artista menor e
fruste dificilmente anima a matéria-prima e, se reutiliza o trabalho do génio,
mutila-o, apaga-lhe a chama.
A vida dos reis, o governo nominal dos reis constitui a grande baliza
com que se ordenam os acontecimentos. Temos de esperar por João de Barros para encontrarmos
novos limites, impessoais e abstractamente temporais, as décadas. Mas em Fernão
Lopes o tempo corre em ritmos fortemente desiguais. Os dois anos da
revolução de 1383-1385 demoram mais a passar do que os acontecimentos
ocorridos nos 26 anos dos reinados de Pedro e de Fernando ou do que os
ocorridos nas duas ou três décadas que se seguem a Aljubarrota. Por outro lado,
as balizas da primeira parte da Crónica de D. João I são dadas pela
negação, pelo não-governo, pelo interregno, pelos marcos da morte de Fernando
e da assunção do rei João de Boa Memória.
Quanto ao espaço, as crónicas de Fernão Lopes inscrevem-se no espaço da Cristandade
Ocidental, particularmente no espaço peninsular e nacional. O espaço de
João de Barros ou de Damião de Góis alarga o teatro da História a todos os
continentes, incluindo o tal continente da quarta
parte nova, a América, aberto pelas viagens dos portugueses. Não foi tanto a
câmara fotográfica que escolheu outras paisagens e outros protagonistas. A
câmara acompanha os mesmos protagonistas, os portugueses, só que, ao focá-los, apanha
também outros povos e, presa de espanto, escancara-se e foca quase isoladamente
os novos personagens estranhos ao continente europeu.
Os acontecimentos narrados explicam-se e decorrem no espaço da
Cristandade Ocidental e, mais especificamente, no cenário ibérico e nacional.
Mas, do ponto de vista social, o espaço alarga-se. A zona da luz, o teatro da
acção é agora ocupado, por vezes mesmo centrado na arraia-miúda, nos
homens-bons, nos comunais, nos honrados. Alguns alçam-se à categoria de heróis,
pois por tais pessoas hão começo às vezes os altos feitos. Chamam-se Álvaro Pais, Afonso Anes Penedo, Gil
Fernandes Elvas, Antão Vasques. O cenário também não se circunscreve apenas ao
palácio ou ao campo de batalha. Vem à praça, à reunião da câmara, ao campo onde
avançam camponeses de ventres ao sol e armados com pedras e estevas aguçadas. A
ordenação da história implica selecção dos acontecimentos. Tal como os
historiadores que o antecederam, o autor privilegia os acontecimentos militares
e os acontecimentos políticos que desembocaram ou se originam na força e na
guerra. Este é de tal modo o alimento do ordenador da memória colectiva ou
historiador que, na segunda parte da Crónica de D. João I, o nosso homem
escreve: pois não temos mais nada que
contar, vejamos quando nasceram e as qualidades dos filhos de João I. Este
capítulo, bem como o facto de esta segunda parte não terminar, como era de regra,
na morte do rei João, não sugerem que o historiador pretendia escrever os feitos
ou contribuir para a descrição dos feitos dos Ínclitos Infantes, feitos em que ele próprio participou?
Os acontecimentos militares e políticos giravam em torno do soberano ou
dos grandes fidalgos e chefes militares. Mas agora a situação altera-se. Por
exemplo, podemos afirmar que Lisboa, e não o Mestre que há-de ser rei,
constitui o personagem central e bem amado da primeira parte da
Crónica de D. João I, mesmo que o Mestre esteja ligado a Lisboa,
mesmo que ele seja o filho político de Lisboa». In António Borges Coelho, A
Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
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