«De
todos os relatos que vieram à tona da imprensa portuguesa sobre episódios do
movimento que implantou a República no nosso país, conclui-se nitidamente esta
coisa curiosa: raros foram os pontos do programa revolucionário que se
cumpriram à risca. No entanto, o movimento
triunfou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a
desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorância da verdade,
desfecharam na manhã de 5 de Outubro
em delirante estralejar da vitória, alcançada simultaneamente pelo esforço heróico
de meia dúzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento
triunfou apesar de tudo: da ausência, no momento supremo, de elementos de
coordenação revolucionária, do desânimo que bem cedo invadiu quase a totalidade
dos dirigentes da campanha, da falta sensível de armamento destinado aos
carbonários e outros civis. Na madrugada de 4 de Outubro, à hora em que um troço
de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o entusiasmo dos
primeiros momentos de combate bem sucedido, ainda numa casa dos lados da Sé
duas criaturas devotadíssimas fabricavam bombas que um emissário da Revolução dai
a pouco devia ir buscar. Mas o emissário não apareceu e um dos fabricantes saiu à rua a inteirar-se da
situação. Caiu logo nas garras da polícia... E como este, muitos outros incidentes
ocorreram na madrugada célebre, mais próprios, sem duvida, a embaraçar a
eclosão do triunfo do que a facilitá-la. É que se do lado dos revolucionários
havia quem suportasse, com fé inquebrantável, todos os obstáculos, e não
poucos, que surgiram ante o seu desígnio, do lado do inimigo a convicção da
perda irreparável da monarquia enraizara-se profundamente, abalando, com
diminutas excepções, as consciências as mais empedernidas. Parece que, mal
soaram no silêncio trágico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das
criaturas, às quais incumbia a missão de lutar pelo regime extinto, teve a
visão clara da inutilidade do seu esforço.
A
influência moral desprendida do acto revolucionário, já em precipitado
desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no
campo revoltoso, a imediata adesão do Adamastor
e do S. Rafael ao movimento, o
bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuíram
inegavelmente, e em larga escala, para assegurar a vitória da República; mas, a
par desses factores, não é lícito esquecer a moleza, a inércia dos que constituíam
o inimigo, uma e outra derivadas dum scepticismo que a monarquia, sem dar por
isso, inspirava desde muito aos próprios que a serviam. É cedo, porém, para
entrarmos na enumeração e apreciação desses factores. O nosso propósito,
narrando o que vai ler-se, é fixar, com o melhor método possível, os pormenores
da sacudidela feliz que destruiu a monarquia portuguesa, as étapes do verdadeiro sonho durante o
qual se desmoronou a dinastia dos Braganças. É um pouco a história da
organização revolucionária seguida logicamente do relatório da batalha de 4 e 5
de Outubro. Aqui e ali ressaltarão diversas notas confiadas por autênticos
conspiradores ao signatário destas linhas e que, se não modificam a impressão
geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, contudo, nuances absolutamente inéditas que é justo
e necessário pôr em letra redonda. A história da organização revolucionária, sabemo-lo
perfeitamente, escreveram-na três homens durante o período febril da sua
preparação. Um deles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer,
o capítulo mais interessante, o que delineava, em traços simbólicos, todo o
plano de ataque às instituições monárquicas. Liam-se nesse capítulo a força
imponente dos elementos revolucionários e a sua distribuição pelos pontos vulneráveis;
era o balanço, lucidíssimo para os iniciados e ininteligível para os profanos,
do grande exército democrático que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel
Bombarda destruiu-o receoso de que viesse a cair, após a sua morte, em
poder do inimigo.
O
outro capítulo escreveu-o João Chagas ao sabor da oportunidade, em minúsculos pedaços de papel, nas margens
livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelíssimo
das assembleias revolucionárias que antecederam o movimento, as actas
das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adesões que dia a
dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capítulo não foi destruído.
Atravessou o período mais aceso da luta escondido num chapéu feminino, o chapéu
da esposa do ilustre panfletário, e só reviu a luz do dia quando o governo
provisório já tinha iniciado a sua obra de reorganização politica. Ainda outro
capitulo, o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que
deviam suceder imediatamente à consagração solene do triunfo. Esse esteve, por
instantes, condenado a desaparecer nas profundezas dum sifão, transitou depois
de algibeira para algibeira e por fim encontrou refúgio seguro na redacção dum
jornal, a Lucta... A dois passos da policia. Qualquer desses capítulos,
publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a
variadíssimos comentários como a uma legítima exclamação de não menos legítimo
espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vai seguir-se,
encontrar-se-ão simplesmente os elementos aproveitáveis à formação dum quarto
capítulo, meramente subsidiário, não traçado por espírito de revolucionário que
o não fomos, mas anotado por quem, durante o período de incerteza, limitou a
sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar
incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo,
muito pavor. De mistura com isto, repetimos, aparecerão os depoimentos dos
revolucionários autênticos, dos que jogaram a vida numa cartada de exito.
A
perspicácia dos espiões ao serviço do antigo regime
A
polícia, que o defunto juízo de instrução criminal empregava especialmente na
espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um belo dia do final do
reinado do rei Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o
partido republicano, que uma denuncia afirmava mover-se activamente numa
conspiração surda, mas tremenda. Os bufos
puseram-se imediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe
conta pormenorizada da sua missão. O relatório dessa espionagem, que pretendia,
se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionário do 28 de
Janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma
espionagem exerceram. Um dos bufos
diz pouco mais ou menos isto: - Na noite de... ás... horas, vi entrar na
casa n.º... da rua de... um individuo
magro, trigueiro, nariz comprido e de óculos, que se me constou ser empregado dum judeu lá para os lados
de... Saiu da mesma casa às... horas e
também se me constou que assistiu com mais
vinte e tantos indivíduos a uma reunião secreta». In
Jorge D’Abreu, A Revolução Portuguesa, O 5 de Outubro de 1910, Lisboa, Edição
da Casa Alfredo David (encadernador), Imprensa Libanio da Silva, Lisboa, 1912.
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