A Viagem
(…) Para o companheiro, frei Pere de Tever, este tipo de atitude havia
representado um grave problema desde o início. A intransigência e o fanatismo
de frei Berenguer tinham sido maus companheiros de viagem. Porém, a sua função
era a de um simples ajudante para além de que, dada a idade do seu irmão de
religião, mais parecia uma muleta do que um secretário. A sua juventude
inclinava-o para a curiosidade e a excitação de uma viagem como aquela, e
sentira-se bem entre o povo mongol. Surpreendera-o a grande tolerância
existente naquela corte e as múltiplas embaixadas de países remotos à espera de
audiência haviam-lhe permitido ocupar muitas horas a conhecer gente diferente e
de costumes tão opostos, Estava fascinado com a religião do Grande Khan, o xamanismo, com a sua crença de
que existe um só Deus, ao qual é possível adorar de muitas formas diferentes.
Espantado, vira como o Ilkhan Hulagu assistia a diferentes cerimónias religiosas,
budistas, cristãs, muçulmanas, com o mesmo respeito que lhe merecia a sua
própria. De tudo isto não dissera nem uma palavra a frei Berenguer que, desde o
princípio, se negara a aceitar qualquer facto positivo lá onde tinham estado.
Criticava ferozmente a comida, o vestuário e inclusivamente a tradicional
cortesia mongol. A própria imperatriz Dokuz Khatum ficou desagradavelmente
surpreendida com a violência dos seus argumentos, se bem que o escutasse com
amabilidade, e não voltou a recebe-lo, apesar dos rogos do jovem frade e da ira
de frei Berenguer, cego a tudo quanto não fosse as suas próprias crenças.
Na realidade, os mongóis deixaram o seu velho irmão a ferver na própria
raiva e frustração, negando-se a ouvi-lo mas, ao mesmo tempo, tratando-o com
suprema amabilidade, E isso é que tinha sido pior, aquela cortesia era cem
vezes pior do que a tortura e o martírio para com o seu intolerante irmão. Por
outro lado, frei Pere de Tever não conhecera nada igual na sua curta vida. Como
filho segundo de uma família da nobreza rural, fora entregue à ordem dos Pregadores
com dez anos e crescera entre as paredes do convento, pensando que a sua vida
permaneceria imutável. Desde muito novo deu mostras de grande talento para o
estudo e a aprendizagem das línguas: o latim, o grego, o árabe, o hebreu. Era
um apaixonado pelas bibliotecas dos mosteiros, a tradução de livros antigos e esquecidos,
e durante muito tempo pensou que o seu futuro estava ali. Aos dezasseis anos, a
ordem enviava-o de mosteiro em mosteiro para copiar determinado pergaminho,
traduzir um texto ou simplesmente averiguar o número de livros que possuía
determinada biblioteca conventual. E gostava desse trabalho, gostava mesmo
muito desse trabalho.
Quando o superior lhe comunicou a ordem para efectuar aquela viagem,
ficou inquieto e a perturbação apoderou-se dele. Não conhecia da vida senão a
ordem estrita do convento e do mundo exterior os rumores de grande perigos
murmurados pelos padres de mais idade. Mas toda a perturbação desapareceu como
que por magia, quando embarcou em Marselha rumo ao desconhecido. A vida agitada
da travessia, o ar do mar que lhe impregnava os pulmões como nunca antes nada lhos
enchera, a visão da imensidade dos mares e estepes, tudo isso lhe transmitiu a
sensação do minúsculo que era o mundo de onde vinha. A realidade ampliava-se para
ele a cada passo e o espírito enriquecia-se perante o estrépito de cores, línguas
e costumes que ia conhecendo. Ao mesmo tempo que o cérebro de frei Berenguer se
encerrava no baú das suas crenças, frei Pere de Tever descobria que o mundo não
terminava no jardim do claustro. Escreveu com esmero a carta que o irmão lhe
ditou, sem fazer comentários, transcreveu a extensa lista de ofensas e opróbios, guardando para
si a sua opinião. Sabia que era perder tempo tentar convencer o irmão e também
que podia ser muitíssimo perigoso dissuadi-lo. Não, reflectiu, será melhor esperar por uma ocasião mais
propícia, há-de haver uma possibilidade
de dar a conhecer o meu ponto de vista quando me interrogarem. Tinha a certeza
de que seria interrogado em confissão, os seus superiores não deixariam de
comprovar se aquela viagem influíra nas suas crenças, se teria contraído alguma
doença perigosa no contacto com o mundo exterior. Tinha de agir com muita prudência
e cautela. Ficou absorto nos seus pensamentos e os seus lábios deixaram até de
recitar a oração. Tinha de encontrar maneira de manifestar a sua opinião sem
ser acusado de rebeldia». In Núria Masot, A Sombra do Templário,
colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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