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De acordo com o original
«(…) Quando, finda a
cerimonia religiosa, essa vaporosa figurinha de mulher se lhe mostrou em toda a
pequenez graciosa do seu vulto, Luiz reconheceu que ella ia soltando umas
invisíveis cadeias, leves e fortes, que vinham prender-se-lhe ao coração, e lh'o
levavam captivo no rastro d’aquelles passos, o vera incesso patuit dea
do poeta mantuano. Desde essa hora uma vaga anciedade foi crescendo no seu peito
como uma onda que vem rolando sobre a praia, arredondando-se numa curva d'espuma,
erguendo-se como o collo dum cysne até que desabrocha com ímpeto na areia,
arremessando ao ar uma chuva de pérolas e o murmúrio dum longo arquejo… N'esta
anciedade estava na cella de seu tio em Santa Cruz, sabbado da alleluia, um dia
de bom agouro, como se houvera agouros certos! Quando de repente se annunciou
que el-rei e a corte não tardariam no mosteiro. Eram mimosos d'estas honras os
monges de Santa Cruz; mas causava sempre uma alegre surpreza o annuncio de
visita real. Desde Affonso Henriques, que ali descançava das canceiras da
guerra, e ali quiz dormir o somno eterno, choveram mercês e distincções sobre
Santa Cruz. Honravam-se os filhos de nobres com serem admittidos na communidade.
João de Noronha recusara em tempo de João II a nomeação de arcebispo de Braga
por não querer desapossar-se da dignidade de prior de Santa Cruz. El-rei Manuel
I mandara reedificar magnificentemente egreja e mosteiro. O próprio infante
João sen filho reunira na pessoa do prior, que era então Bento de Camões, as
honrosas funções de cancellario da universidade, de modo que os alunmos das
escolas geraes tinham de ir a Santa Cruz buscar o grau de doutores; e não contente
com isto, João III acrescentara um novo claustro ao mosteiro, traçando-o na
manga do seu roupão, pelo que se ficou chamando da Manga.
O prior desceu logo para
receber a corte, e Luiz de Camões quedou-se alheiado, como quem espera uma
grande felicidade e ao mesmo tempo tem medo de que lhe fuja… Foi no claustro do
Silencio, onde o cinzel manuelino recortou
nas ogivas e nas columnas as mais bellas rendas do gothico florido, que Luiz de
Camões veio encontrar a corte, justamente no momento em que a formosa Catharina,
com o braço passado á cintura de D. Maria de Távora, se encostava ao parapeito
daquella fonte de mármore cor de rosa, que lá está ainda no claustro sem já ter
agua para chorar as memorias deliciosas desse tempo… Foi ahi que Bento de
Camões apresentou seu sobrinho á corte. D. Catharina d' Áustria teve uma
palavra amável para festejar o novel trovador: - Tão moço sois, senhor Luiz de
Camões, que parece que a gloria vos sae ao encontro sem dar tempo a que a
busqueis!... Luiz de Camões respondeu: - Mais moço ainda era D. Nuno Alvares
quando sua alteza real a senhora D. Leonor, que Deus guarde, lhe quiz vestir as
armas por sua própria mão. A promptidão da resposta e o alcance d'ella impressionaram
agradavelmente a corte. Sobretudo, no coração de Catharina de Athayde, aquelle mancebo,
de cuja ousadia e talento se fallava e cujos olhares a haviam enleiado na
véspera em spiraes de suavissima luz, começou a occupar um logar que o pejo dos
poucos aunos ia cedendo não sem custo, vencido pela doce força do amor nascente.
Espalharam-se os grupos
ao acaso pelo claustro e templo, e Luiz de Camões ousou dirigir-se às duas
donzellinhas que se deixaram ficar encostadas á fonte de mármore cor de rosa
como duas nayades inclinadas sobre a urna crystallina donde uma fila de agua
deriva. O que n’essa agradável conversação disseram nunca ninguém mais o soube
ao certo. Ah! Mas foi durante ella
que o amor, com mão furtiva, acabou de armar brandamente os seus laços, de que ninguém
se pode livrar. Em torno daquella gentil estatuasinha de mulher, Luiz,
borboleta que obedece ao seu destino, adejou em voltas doidas, namorado da
chamma que resplendia nos castos olhos da donzellinha, e que mais tarde devia
queimar-lhe o coração no fogo lento da saudade. Nas faces de Catharina havia
todo o encanto de um rostinho de tauxia de uma dama lisbonense. Na sua voz
pozera a natureza as notas agudas mas feiticeiras do fallar das lisboetas, que
chia como um pucarinho novo com agua (primeira carta escrita da Índia). D’essa
doce conversação nunca mais se lhe desluziu a grata memoria:
Conversação foi fonte
d'este engano
que por meu damno entrou
com falsa còr.
Conversação domestica e
damnosa
na livre formosura e tenra
idade,
em ambos accendeu chamma
amorosa.
Ficou captivo o coração de Luiz quando a corte, passados poucos dias,
se tornou a Lisboa. Nunca mais houve socego no espirito do enamorado mancebo. Já
lhe aborreciam os livros, já lhe enfadava aquella formosa Coimbra, a que
todavia se sentia docemente preso por uma suave memoria… Sentia-se cuidadoso
sem cuidados, inquieto sem motivo. O que sentia hora a hora só o poderia
explicar tentando dizer o que era o amor…» In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia,
pq
9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.
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