Apresentação
«(…) Aqui talvez devêssemos nos lembrar do que dizia Chombart de Lauwe a propósito de uma
cidade e a aglomeração metropolitana. Ele dizia que um bairro urbano não é determinado apenas pelos factores geográficos e económicos,
mas pela representação que fazem dele os seus moradores e a que têm dele os moradores
de outros bairros. Assim, aproveitei os desdobramentos deste grande debate
para expor, no primeiro capítulo, como a noção de bairro foi tratada em alguns dos trabalhos que consideramos importantes
da literatura antropológica, sociológica e urbanística. Além disso, selecionamos
estes trabalhos segundo um outro critério: todos mantinham entre si uma relação
que se dava no campo, mas também no tempo. Em Sidewalk, Duneier escrevia sobre o Greenwich Village no período em
que vigorou a política de tolerância zero do prefeito Rudolph Giuliani, trinta
anos depois de Jane Jacobs ter publicado Death
and Life of Great American Cities (1961), o seu grande manifesto contra o
urbanismo modernista que punha em risco a vida da rua em favor da quadra como
unidade mínima desta cidade preconizada pelo racionalismo da nova ciência. O segundo exemplo recai sobre o
trabalho hoje incontornável para os estudos etnográficos urbanos: Street Corner Society, livro escrito por
William Foote-Whyte, em 1943, a partir do North End, um bairro mal-afamado de
Boston onde moravam imigrantes italianos, judeus, irlandeses e negros. Quase vinte
anos depois, foi Herbert Gans quem retornou à mesma área daquela cidade para realizar
sua pesquisa (The Urban Villagers,
1962), lá encontrando, já velhos, os personagens do livro de Foote-Whyte. A
nossa pesquisa manteve este tipo de nexo com o livro Quando a rua vira casa (1981), escrito há quase trinta anos pelos
professores Marco Antonio Silva Mello e Arno Vogel como resultado de um
empreendimento colectivo realizado no bairro do Catumbi, na Selva de Pedra
e na Cruzada São Sebastião pelo Centro de Pesquisas Urbanas (CPU) do
Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), em 1979. Depois de
várias intervenções urbanísticas, desapropriações e demolições sucessivas, o bairro
do Catumbi foi seccionado de sua vizinhança, nas encostas de Santa Teresa,
para que fosse construído o viaduto da Linha Lilás. Os impactos dessas
políticas hoje eufemisticamente chamadas de renovação
urbana’ no ordenamento espacial e moral
da cidade configuram A Questão,
título do capítulo que inaugura o presente trabalho.
[…]
A Questão
Em 2003, os moradores do Leblon, bairro situado na Zona Sul do Rio de
Janeiro, estavam mobilizados e organizavam-se contra a construção de um shopping center. Nos supermercados, às
mesas dos bares, na praia, nas bancas de jornais e nas praças o assunto controverso
se fazia presente em diversos momentos, ora para abrir o jogo das conversas, ora
como mote para o exercício das análises conjunturais. Quase dez anos se
passaram desde que a notícia surgira pela primeira vez. Durante esse tempo, a
população local tinha conseguido embargar as obras de um outro grande empreendimento
comercial na área correspondente ao Clube de Regatas do Flamengo, chegando
até mesmo a anular um ambicioso projecto municipal de construção de um túnel pelo
qual deveria fluir parte considerável do tráfego entre as zonas sul e oeste da
cidade, desafogando as demais áreas da região dos transtornos quotidianos
causados pelos engarrafamentos. A mobilização dos moradores pela preservação
dos valores de ambiência urbana que atribuíam ao bairro alcançara, nos dois
casos, o sucesso. Pois, sem o túnel, aquele recanto carioca deixaria de correr
o risco de se ver transformado em corredor,
em passagem’ ruidosa para o que lhes
parecia um insuportável fluxo suplementar de veículos.
Sem o aludido centro comercial, o bairro não escaparia também de tornar-se
o destino de levas de hóspedes não convidados sob a espécie dos visitantes
atraídos para suas boutiques, movidos
exclusivamente pelas imposições do consumo. Entretanto, em 2003, depois das
muitas idas e vindas do demorado processo de negociações, os empreendedores do
moderno shopping center finalmente
obtiveram a autorização concedida pela FEEMA (Fundação Estadual de Engenharia
do Meio Ambiente) e pela Geo-Rio (Fundação Instituto de Geotécnica do Município
do Rio de Janeiro) para a realização das obras de sua construção, iniciadas
pelo desmonte da Pedra do Baiano. E, novamente, os destinos do bairro estavam
sobre a mesa, pois voltava às ruas e ao debate público o polémico assunto.
Havia quem se queixasse dos impactos ambientais causados pela construção e
dos transtornos no trânsito provocados pela chegada dos novos consumidores. Os
proprietários do Condomínio Jardim de Alah, vizinho às obras, reclamavam a
possível perda de vagas para estacionamento na pequena rua situada ao lado dos
prédios. A demolição do Teatro Casa Grande representava para muitos a perda
de um símbolo caro à identidade local. Além disso, o barulho causado pelas
dinamites e percucientes bate-estacas e todos os perturbadores
ruídos do vai-e-vem diuturno do canteiro de obras era também motivo dos veementes
protestos da Associação de Moradores da Rua Almirante Guilhelm, rua paralela ao
local das obras. Havia ainda os que defendiam a ideia de se preservar a
intimidade do lugar na forma do seu diversificado comércio de proximidade,
constituído pela clientela da vizinhança e sustentado pelas rotinas e ritmos os
mais triviais do bairro. Temerosos, os membros da Associação de Moradores do Jardim
de Alah (AMA-JA) argumentavam contra o descaso com que eram tratados os moradores
do entorno e pelas dificuldades que encontravam para obter informações mais
precisas sobre as dimensões das obras e as reais estimativas do público que
esperavam atrair após a inauguração». In Soraya Silveira Simões, Cruzada São
Sebastião do Leblon. Uma etnografia da moradia e do quotidiano dos habitantes
de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro, Tese de Doutorado em
Antropologia, Universidade Federal Fluminense, ICHF, PPGA, Niterói, Brasil,
2008.
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