A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) É justiça, senhor, e merecedor de justiça quem desobedeceu à ordem
do rei, se passeia com um exército e clama
vingança? Olhai, senhor, que vileza! O vosso tio está louco! O
Bragança, torto, o queixo enterrado no peito, as melenas brancas hirsutas sobre
a grossa cabeça redonda (nisso saía ao pai), exultou, embora fingisse
demonstrar um forte sentimento de vergonha pelos tresloucados actos do irmão e
a infelicidade do jovem monarca. Pedro,
porém, e isso Álvaro compreendera, pensou que aos olhos do sobrinho a sua
actuação tivesse tido uma imagem diferente: que o jovem compreendesse que ele,
duque de Coimbra, irmão do pai, não lhe roubara o reino quando o poderia ter
feito, porquê agora? Mas o rei
Afonso só compreendia o que o grupo dos inimigos do tio dizia, se ele viesse em
paz porquê o exército?
Esqueciam-se de o informar que nem o duque de Coimbra nem o Avranches
vinham, até ao momento, armados pessoalmente para uma batalha. O infante
Pedro sentia que já nada podia fazer. Não iria retirar, não o queria
fazer, não podia ir a Lisboa, não desejava avançar sobre Santarém porque nunca
pensara atacar o rei. Falar com ele, uma criança, talvez, mas como? O destino estava redigido na larga folha onde, no
início, Deus tinha colocado a sua hora e o seu nome. Portanto, por Loures,
Torres Vedras, Óbidos, recolhendo a
Coimbra? Mas que loucura fora aquela?
O que era certo é que ninguém lhe dera batalha. Talvez Henrique, o irmão
em quem tanto confiara, e a filha... O irmão.
Mas o irmão estava no outro lado. Avranches
não acreditava nele. Avisou-o. Mas Pedro
insistiu e esperou três dias em Rio Maior por Henrique. O silêncio foi a
resposta. O rei não tinha voto na matéria e Henrique não disse nem fez coisa
alguma. E depois que representava um irmão para ele, que já perdera tantos,
e um irmão dado a orgulhos e rebeldias, perante o império africano, o Mar
Oceano, as ilhas e a Costa da Guiné?
A Ordem de Cristo era soberana e estava, de momento, acima das vicissitudes dos
príncipes terrenos... No dia 16 de Junho, Pedro
dirigiu-se a Alcoentre. Os corredores de El Rei perseguiam a triste coluna a
tiros de besta e com más palavras: hipócrita, ladrão do povo, traidor,
tirano... Começava a debandada perto de Santarém. Muitos homens, ao verem o
exército do rei, e sabendo da sua presença, temiam e desertavam, antevendo o
suicídio da hoste do duque de Coimbra. E acabaria assim um filho de João I de
quem o povo guardava a santa memória?
Avranches, ao ver a corrida, a fuga desordenada dos que até no campo
deixavam o cabedal, o mantimento e as armas, resolve fingir que vão para Lisboa,
para os conter e ao desânimo. Olha o irmão de armas, aquele belo homem que
acompanharia até depois da morte, pelo amor que lhe tinha e o seu juramento sagrado, e vê-o
ausente, triste, melancólico, como se a paz, a paz dos santos o tivesse
adormecido e parte dele já se achasse longe da Terra. Tinha assistido a isso
muitas vezes, antes de um recontro, durante a carnagem de um assalto e a
violência de uma batalha. Homens valentes, corajosos, cobertos de sangue,
lutando até ao limite das forças mas cujo olhar via já outros mundos, outras
colinas, outros prados como, quem
sabe? – essas luminosas planícies celestes onde a sede jamais afecta os
homens, as flores são eternas e passeiam animais como os que estiveram presentes
ao nascimento do Senhor em Belém, naquela fria e longínqua noite de Dezembro. E
recordava os velhos tempos da juventude, quando tinham iniciado a Grande
Viagem pelo mundo conhecido e desconhecido. Quando na Corte castelhana
tinham oferecido ao rei belos presentes e o Infante, este, recebera vinte e
cinco mil peças de ouro e aquele estranho e sábio Garcia Ramires que sabia
grego, latim, hebreu, árabe e outros dialectos do longínquo Oriente... Ou ainda
a recordação de seu pai João Vaz Almada, morto centenário, que lhe legara a
paixão pelos novos mundos, aquele gosto de viajar, sempre à frente da própria
vida, como se quisesse, antes de acabar, percorrer as etapas do seu destino a
dobrar, para não perder um segundo sequer. E depois, quantas vidas se pode
viver numa só? Hungria,
Moldávia e Valáquia, atacadas pelos Turcos, e a marka de Treviso oferecida ao príncipe português em memória dos
seus magnânimos e insubstituíveis serviços!
E Veneza, pérola do Adriático, Chipre e a Terra Santa! Mas, antes, o quê mais? Patras,
Constantinopla, o Cairo, Babul
como lhe chamavam, o Nilo cor de sangue dos deuses antigos, esse Egipto tão velho
ou mais que Moisés e Abraão... E Jerusalém. E aqueles estranhos sinais de fumo
do deserto de Tih, depois da longa caminhada, Akabah, Gaza... e do outro
lado Jafa e Cesareia, os montes de Judá. Álvaro recordava a visão magnífica
dos montes Gilboe, Hermon, Tabor e aqui, este que ele subira quase em prantos,
a visão do longo vale que Jesus mirara e, antes dele, Gedeão. O Tabor da
transfiguração e da presença divina para alimento da alma dos homens! Um velho criado
francês dissera-lhe que o pai, que fora cozinheiro de um tio da mãe do conde,
sabia de outro Tabor, mais perto, na terra dos Albigenses e dos heréticos
Cátaros (?) que a Igreja exterminara como filhos do Diabo». In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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