sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Herculano Desconhecido. 1851-1853. António José Saraiva. «… qualquer estudante de economia política, saltando dos bancos da escola para o gabinete da secretaria, nos teria feito o obséquio de salvar a pátria: sem nos incomodarmos a conceder a imortalidade…»

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Documentos. Colaboração de Herculano n’O Portuguez
N.º 2, 12 de Abril de 1853. Fontes Pereira de Melo
«(…) Encomiastas escriturados e panegiristas oficiosos andam por aí proclamando a vozes a glória do segundo Necker, o suplemento aos sete sábios da Grécia. Colbert e Pitt, Bastiat e Robert Peel, estes nomes venerandos são incomodados sucessivamente para celebrarem os feitos do homem, que o cego acaso das revoluções colocou à frente dos negócios financeiros do país, em época tão melindrosa e difícil. Ignorávamos que para ser grande ministro não havia mais do que fazer muitos decretos; que para ser estadista de primeira plana bastava legislar a torto e a direito sobre os pontos mais complicados de administração pública; que para ser economista profundo era suficiente declamar as doutrinas de Say, de Bastiat e de Coquelin. Não sabíamos que e glória se comprava por tão ínfimo preço.
Vivíamos na persuasão errada de que sem muito estudo, sem a observação muito reflectida dos fenómenos económicos do país, sem a indagação muito minuciosa da dependência que têm os interesses criados por esse país com a sua organização económica, não se podia ser sequer um medíocre administrador da fazenda pública. Estávamos na ilusão de que ser grande estadista não era só proclamar os princípios da ciência administrativa, que aí se encontram em qualquer manual; mas saber quais são na prática as excepções a esses princípios, com que cautelas e modificações se hão-de aplicar às circunstâncias peculiares de uma nação. Se para organizar a nossa fazenda bastasse reduzir a decretos as teorias económicas de Say e Coquelin, qualquer estudante de economia política, saltando dos bancos da escola para o gabinete da secretaria, nos teria feito o obséquio de salvar a pátria: sem nos incomodarmos a conceder a imortalidade a Fontes Perira de Melo.
A feição mais característica do ministro que tem sido da Marinha, da Fazenda e das Obras Públicas, é o movimento, a actividade, a prodigalidade estéril de frases, de medidas, de relatórios, de teorias, de salvatérios e de contradições. S. Ex.ª faz e desmancha, aduna princípios opostos, passa rapidamente de legislar ditatorialmente sobre uma ninharia a decretar sobre os pontos mais transcendentes; legisla de improviso e sem consultar as pessoas competentes; promulga um decreto, cujas disposições estão em guerra civil com os princípios do relatório, que o precede; promete a salvação do país em cada uma das suas medidas financeiras. Um dia manda vender os vasos podres da marinha portuguesa, que se não vendem; publica hoje um decreto e suspende-o no dia seguinte; hoje salva o país com uma medida económica, e reserva-se o direito de o tornar a salvar com outra medida diferente daí a poucos meses; hoje felicita o país com a barateza do gelo, pare regalo dos elegantes da capital, amanhã manda construir uma via férrea; hoje é a via do norte, amanhã os fundos aplicados a esta são destinados para a do sul. À incoerência é a deidade tutelar de Fontes Pereira de Melo. Para justificai a conversão forçada, diz que era necessário preencher o deficit e que a receita do Estado não pode ser aumentada; mas logo mais abaixo assevera que a nação pode e deve pagar mais.
Depois de ter legislado sobre as matérias mais importantes da economia e da administração pública, sem atender aos interesses criados, nem aos factos económicos existentes, nem aos dados estatísticos, vem uma bela manhã propor às câmaras a abolição de um monopólio com a rescisão de um contrato; assevera ter na mente desde longa data aquela medida salvadora, e nem sequer tinha pensado na maneira de compensar a quota da receita que aquele novo rasgo económico vai subtrair ao Tesouro. Os princípios opostos da protecção e da liberdade de comércio, da protecção excessiva e da liberdade de comércio exagerada, andam sucessivamente à briga e ao cachação nos relatórios e decretos de Fontes Pereira de Melo». In António José Saraiva, Herculano Desconhecido. 1851-1853, Edições SEN, Porto, 1953.

Cortesia de Edições SEN/JDACT