Um suposto enigma
«(…) Ele dizia coisas
lindas e sábias com a sua vozinha de velha rabujenta, num gesto
frequente de compor o cabelo e o colarinho. Era um prazer, uma delícia ouvi-lo e
aprendia-se sempre lendo-o ou escutando-o. A noite, Latino saía de
carruagem com as irmãs e o irmão. Os dois apeavam-se á porta da livraria Silva,
e as senhoras ficavam dentro do trem, onde esperavam ás vezes longas horas. Porque
em estando a conversar naquela livraria ou em qualquer outro logar em
que se lhe deparassem amigos, Latino distraía-se, animava-se,
esquecia-se de si próprio, dos seus nervos doentes, e não dava tento das horas
que iam passando. Á livraria Pereira, na rua Augusta, concorriam quase
todas as noites Andrade Corvo, Inocêncio Francisco Silva, e dois
homens a quem não faltava ilustração para serem apreciados entre escritores: o juiz
José Maria Borges e o tabelião Barradas.
Não pareça ao leitor que
já deixei quebrado o fio da narrativa. Deve lembrar-se de que estou falando,
aliás bem a propósito de A. A, e da sua época, de uma notável geração de
escritores portugueses, que na minha mocidade encontrei ainda florescente e que
vi extinguir-se dia a dia, homem a homem. Tem-se dito que era o tempo do elogio mutuo? Por que? Porque assentava na verdade e na justiça o que algum
escritor dizia de outro pelo menos em
público?
NOTA: Vem a propósito
citar o testemunho autorizado de um homem ilustre daquela época, testemunho que
eu só recentemente encontrei no 2.° vol. das Cartas de Paris, por Teixeira
de Vasconcelos. Alguém disse que os
redactores da Revista Contemporânea tinham fundado n'ella a Companhia do Elogio
Mutuo. Não é verdade, ao menos na parte biographica. Ninguém paga alli as suas
dividas, mas, se as pagasse, antes em moeda de louvor do que nos sujos cobres da
mentira e da diffamação. Paris, 1862. Outro testemunho, também autorizado e
coevo, já eu conhecia: era o de Camilo numa carta a Ernesto Bíester (Esboços de apreciações litterarias).
Ainda teremos ocasião de
mostrar, nestas mesmas páginas, que o louvor e a censura eram independentes e
livres. Chamar a isso elogio mutuo! Especialmente
as censuras eram tão livres... Que chegavam a ser cruéis: Ernesto Bíester e Júlio
César Machado foram duas vítimas dos censores. Pode lá acreditar-se que, em
tempo algum, dez, vinte, duas dúzias de literatos fizessem confraria para
elogiar-se uns aos outros e mantivessem o pacto, sem de vez em quando o atraiçoar? Quem o
acreditasse não os conheceria. Hoje, hoje é que, vistos já de muito longe, os
tempos, quase remotos, de 1860, nos
chegam a parecer muito benignos na crítica literária e rescendentes a uma vaga
essência de mutuo favor. Porque depois, eu o tenho visto e lastimado, veio
outra raça de plumitivos e com ela o derrancado processo de recíproca difamação
em publico e particular, sem verdade e sem justiça.
Naquele tempo, a
estatura dos escritores atingia, quanto ao maior número pelo menos, uma alta
craveira. Além do seu valor profissional, possuíam ardor combativo. Alguns
deles vinham das lutas políticas liquidadas no campo de batalha com as
armas na mão. E esse espírito guerreiro ainda durante uma temporada o vimos
sobreviver-lhes, como nos dias mais limpidamente luminosos, vemos, depois do
sol posto, demorar-se sobre o ocidente um clarão sanguíneo e áureo. A
literatura, por sucessivas revivescências do espírito medieval, cuja atmosfera Alexandre
Herculano, o Mestre,
respirava apaixonadamente, era uma cavalaria de paladinos intelectuais, que, á
sombra da sua bandeira, terçavam armas galhardamente. Assim tinha sido um
século antes, na longa campanha encarniçada do Verdadeiro Méthodo, e já em meados do século XIX na azeda briga do Eu e
o clero. Assim havia de ser ainda, saudoso ocaso duma grande época
literária, na polémica sobre a conversação preambular do D. Jayme e, principalmente, na questão
coimbrã. Mas relanceemos os olhos pelo florilégio dos notáveis
escritores de 1860 (deixando para
alguma referência especial os Parnasos regionais), e, excepcionalmente,
lembremos aquele insigne Proteu a quem a morte levara apenas seis anos antes.
Aludimos a Garrett, que tinha evocado o cancioneiro popular e restaurado
o nosso teatro; que tinha aveludado galantemente a poesia emotiva na maciez
flexível de madrigais de salão e bordado sobre tradições nacionais o novo
debuxo de modernos poemas. Os homens de letras que viviam em 1860 são dignos de memória perdurável.
Era Herculano, que reconstruiu a história pátria e nacionalizou o
romance histórico; era Castilho, que fez reflorir a língua de ouro de
Sousa e Lucena e nela aclimou famosos autores estrangeiros desde Anacreonte e
Ovidio até Molière e Méry; era Camilo, que fundou a novela de
costumes, a Comedia humana dos portugueses, como Balzac o fizera em relação
ao seu país; era Rebelo da Silva, esmaltador hors ligne, tão variegado como Teófilo Gautier; era Rodrigues
Sampaio, um jornalista exímio no floreio da ironia e na perícia da réplica; era
Inocêncio da Silva, continuador indefesso do abade Barbosa Machado na vasta
empresa do nosso inventário bibliográfico; era Silva Túlio, carinhoso guia dos novos
na lição das fontes clássicas e no manejo das expressões idiomáticas; era Andrade
Corvo, um erudito como Latino e um dos melhores discípulos de Herculano
como romancista; era Mendes Leal, poeta lírico de voos épicos e dramaturgo que,
a partir do Pedro e dos Homens de mármore, humanizou o teatro na flagrância
dos assuntos sociais; Bulhão Pato, hoje septuagenário (morreu em 24 de
Agosto de 1912), que se nivelou na
estrofe com Trueba e Campoamor; João de Lemos, cujo soberbo estro não
envelhecerá jamais; Teixeira de Vasconcelos, o prosador de mais clara e concisa
linguagem no jornal e no livro; José Estêvão, que iluminou a literatura
política na tribuna parlamentar com relâmpagos de arrebatada eloquência;
Lopes de Mendonça, polígrafo sanguíneo, menos subtil no folhetim que Júlio
Machado, no folhetim que é a pedra de toque para conhecer-se a graça de uma
língua, o génio de um povo, o sorriso de uma literatura». In Alberto Pimentel, Memórias do
Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz
Editores, Porto, 1913.
Cortesia de M e Moniz/JDACT