sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «… uma discussão que tive com um cristão chamado Eulógio; acusava os meus de ‘terem destruído a biblioteca de Alexandria, aquando da conquista do Egipto no século I da Hégira’»

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Um toledano diferente dos outros
«(…) É verdade, confesso que várias vezes abandonei Toledo, cansado de todas estas intrigas, estas conspirações, esta violência, mas também porque fui atraído, um pouco mais tarde, pela vida cultural brilhante que reinava em Córdova, na época dos grandes califas. Foi então que escrevi a obra que mais contribuiu para a minha fama, al-Muhtasar; é ao mesmo tempo um tratado que expõe e comenta todas as nossas crenças religiosas e um convite à renúncia a todas as tentações que nos afastam do bom caminho. Mas, durante este exílio momentâneo, permaneci fiel à minha cidade. A ela regressei quando de novo aí reinou o espírito nas décadas que precederam a sua conquista por Afonso VI. Este século V da Hégira foi para nós, muçulmanos, a idade de ouro cultural da cidade.
Fui aí chamado para ser nomeado cadi pelo soberano da cidade, chefe de uma dessas taifas, de um desses pequenos estados que haviam nascido após o desmembramento do califado de Córdova. A Toledo que então conheci, era capital de um reino cujos príncipes rivalizaram com o fausto de Córdova e de Sevilha. Quando a tornei a ver, após uma ausência demasiado longa, fiquei fascinado com o luxo exótico dos palácios que o rei al-Ma'mun herdara dos seus predecessores. Por outro lado, ele próprio embelezou e aumentou a cidade para a transformar numa maravilha artística. Para o realizar, os melhores artistas e os artífices mais competentes, arquitectos, escultores, pintores, alguns vindos das longínquas terras do Oriente, nela convergiram e exibiram os seus talentos.
Um determinado poeta da corte podia, com justiça, exclamar, ao contemplar a cidade alcandorada num promontório e rodeada pelas gargantas que o Tejo talhou na rocha: Toledo está além de tudo o que se diz dela. Deus vestiu-a como uma noiva cingindo-lhe a cintura com um rio semelhante à Via Lâctea e coroando-lhe a cabeça com ramos que são como estrelas. Os arredores imediatos não eram menos belos. Ao longo do Tejo estendiam-se, a perder de vista, pomares onde se colhiam sobretudo romãs muito saborosas. No meio dos jardins perto de Alcântara, a ponte, a famosa almunya, residência de campo, real. Aí se erguia um grande pavilhão, chamado o salão da Nora. Ao lado, um vasto lago em cujo centro fora construído um quiosque onde o rei se poderia dirigir de barco. O quiosque tinha forma de cúpula e era feito de vitrais de mil cores e as juntas que os uniam eram de ouro. Um dispositivo engenhoso conduzia a água ao cimo da cúpula de modo que, ao escorrer pelas paredes, envolvia completamente o refúgio real com uma cortina de frescura.
Na estação calmosa, al-Ma'mun gostava de aí se recolher para gozar de uma temperatura mais clemente. De noite acendiam-se tochas no seu interior e o espectáculo que proporcionava visto da margem era mágico. Um poeta, convidado pelo príncipe, descreve-nos deste modo a visão que teve: O salão brilhava como se o céu se encontrasse no mais alto do firmamento e a lua cheia no seu zénite. As flores perfumavam o ambiente e, no rio, os convidados bebiam à vontade. A nora gemia como gemem, feridas pela chama devoradora da dor, a camela que perdeu a sua cria ou a mãe que vê morrer o seu filho. O céu parecia banhado com gotas de orvalho. Os leões das fontes abriam as suas enormes fauces para dar água à vontade. Perante tanta beleza, todo o toledano se sentia com alma de poeta. Quanto a mim, o cargo de cadi deixava-me inúmeros tempos livres que ocupava com o estudo. Dirigia os trabalhos de um grupo de astrónomos; entre eles encontrava-se o meu discípulo preferido, Azarquiel, que continuou a minha obra publicando as Tábuas de Toledo que calculáramos juntos. Estava ali o fruto de vinte e cinco anos de observações do céu.
Essas tabelas tratavam do movimento dos planetas, da medição do tempo, e dos eclipses. Azarquiel e eu tentávamos deste modo adaptar os dados dos Antigos às coordenadas de Toledo. Quantas vezes, durante a minha tão longa existência, me insurgi contra esses ignorantes que afirmavam que o nosso único mérito foi termos servido de intermediários para a cultura grega! Sim, demos a conhecer Aristóteles e Euclides, Ptolomeu e Hipócrates, mas também corrigimos e melhorámos as suas obras. Graças à sua observação do céu, Ptolomeu chegou a conclusões interessantes, mas os nossos observatórios de Damasco, em seguida os de Bagdad, e por fim os de Toledo, fizeram descobertas extraordinárias. E, além do mais, em Toledo, aperfeiçoámos e fabricámos muitos instrumentos de observação e de cálculo. Por exemplo, foi em Toledo que Ibrahim ibn Saïd al-Sahbi inventou e construiu o astrolábio universal. Toledo vivia, Toledo pensava, Toledo criava. Vejo um signo desta vitalidade no gosto universal entre os toledanos pelas coisas escritas. O que está escrito fixa o saber para as gerações seguintes. É verdade que partilhamos este gosto com a totalidade do nosso povo. Lembro-me de uma discussão animada que tive com um cristão chamado Eulógio; acusava os meus de terem destruído a biblioteca de Alexandria, aquando da conquista do Egipto no século I da Hégira. Como podia ele acreditar que um dos nossos emires tivesse pronunciado esta frase criminosa: Se esses livros contrariam a nossa fé, devem ser destruídos, se concordam, são inúteis?
Tive de lhe citar, para acabar de o convencer, as setenta bibliotecas de Córdova dos califas que, todas elas reuniam mais de um milhão de obras. A principal, a dos Príncipes, não fora criada no terceiro século da Hégira pelo emir Muhammad? Abderrahman II teve o cuidado de a enriquecer e mandou ao Oriente o poeta astrólogo Abbas ibn Nasih com a missão de lhe trazer todas as obras que conseguisse encontrar. Mas foi al-Nakem II que a tornou igual à de Alexandria visto que então possuía quatrocentos mil volumes. E nós, toledanos, herdámos uma boa quantidade dessas obras quando o califado se desmembrou». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT