Dois Sistemas em Confronto no Ocidente Peninsular
«(…) Para enquadrarmos historicamente o processo, vejamos, de forma muito
breve, as linhas gerais do conflito entre os dois sistemas em confronto no Ocidente
Peninsular. A última metade do século IX assistiu à primeira grande investida
cristã peninsular contra uma região ainda não dominada. Na realidade, conhecedor
das fraquezas interiores do Estado muçulmano, Afonso III aproveita as rebeliões
e os problemas sociais para, através dos seus condes ou sob o seu comando,
ocupar definitivamente territórios que os muçulmanos não tinham capacidade de
reivindicar. Já foi suficientemente demonstrado que esse processo de conquista
se traduziu sobretudo numa ocupação de territórios insubmissos a qualquer das
formações, e à sua organização através de legados régios, e não a uma conquista de território do emirado de
Córdova, pelo menos no que diz respeito ao grosso da região ocupada. O Islão,
ao ocupar a Península Ibérica a partir da invasão de 711, vai tentar dominar a
totalidade dos seus territórios através da fixação de guarnições em cidades estratégicas
e de pactos com antigos senhores hispano-visigodos a quem permitia, mediante condições,
continuar a controlar boa parte das suas antigas propriedades, ou mesmo manter parte
do seu antigo poder. É frequentemente citado o tratado (ou pacto) de Tudmir
pelo qual o senhor da região de Múrcia aceitou do filho de Muza ibn Nusair,
Abd-al-Aziz, a dhimma ou protecção,
mediante a submissão das populações cristãs da região, continuando a gerir de
uma forma semi-independente um território que compreendia parte das actuais
províncias de Múrcia e Alicante.
NOTA: Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso. Édito de
Abd al:Aziz ibn Musa ibn Nusair a Tirdmir ibn Abdush [Teodomiro, filho dos
Godos]. Este último obtém a paz e recebe a promessa, sob a garantia de Allah e
do seu Profeta, de que a sua situação e a do seu povo não se alterará; de que
os seus súbditos não serão mortos, nem feitos prisioneiros, nem separados das suas
mulheres e filhos; de que no lhes será impedida a prática da sua religião, e de
que as igrejas não serão queimadas nem desapossadas dos objectos de culto que
existem nelas; tudo isso acontecerá enquanto satisfizerem as obrigações que
lhes impomos.
Muza chega à Península em 712, com um exército de 18 000 homens, Para
reforçar as tropas de Tariq. Após as primeiras vitórias, divide o seu
contingente em duas colunas, uma das quais comanda, dando a chefia da outra ao
seu filho, que dirige a ocupação da região a leste da linha de avanço de Tariq.
Esta linha dividia a Península em duas metades que dificilmente se poderiam
comunicar e, eventualmente, coordenar esforços de resistência, a não ser pelo
complicado e montanhoso extremo norte. Da Bética, onde conquista as principais
praças, entre elas Sevilha e Córdova, e tomando a calçada romana, Tariq ruma a
norte, procurando atingir a estratégica cidade de Toledo, não só porque
poderia, dali, dominar um importante cruzamento de vias que se reuniam no
centro (quase) geométrico da Península, mas igualmente porque
representava um objectivo político e psicológico, como antiga capital dos reis
visigodos. De Toledo ruma a Amaia e, por fim, a Astorga,
atingindo assim o antigo limes romano.
É uma estratégia usada frequentemente pelos muçulmanos, mas que tinha sido já
empregue em campanhas registadas ao longo da história militar, e que se continuou
(e continua) a utilizar. Faz parte daquele princípio da doutrina militar
que podemos designar por bom senso.
Mas não foram apenas as regiões do sul romanizado aquelas onde se
verificaram pactos de submissão por parte das populações ou dos seus chefes.
Mais a norte, na Galiza, alguns (ou a maior parte) dos caudilhos locais concluíram
tratados com os novos vencedores, como aconteceu em Lugo, onde os cristãos da
região receberam e dhimma de Muça. A
falta de referências às conquistas muçulmanas na antiga Lusitânia permitem
pensar que, após a queda de Mérida, muitas foram as cidades que abriram as
portas aos novos senhores. Lisboa teria sido, eventualmente, um desses casos, o
que não é de estranhar, tendo em conta, entre outros factores, a importante
colónia de sírios que parece aqui ter
existido.
NOTA: Contudo, o caso de Lisboa ainda não se encontra bem
estudado. Oliveira Marques refere-se à conquista de Évora, Santarém, Lisboa e
Coimbra, por Abd al-Aziz, em 714. Mas o texto do embaixador marroquino que
visitou Espanha nos tempos de Carlos II, e publicado por Dozy refere que excepto
três distritos, a saber, Santarém e Coimbra, no ocidente, e ... no leste, Muça
repartiu entre os seus soldados as terras de todos os distritos conquistados
pela força... Mesmo sabendo que este texto é tardio, embora baseando-se em fontes
antigas, e admitindo que o autor copiou bem as indicações, podemos perguntar
por que razão estas comarcas foram poupadas à distribuição de terras, tendo em
conta que no que toca às duas portuguesas
estamos perante zonas agricolamente ricas. Uma hipótese é o de estarem nas
franjas da zona ocupada e, por conseguinte, longe das terras mais cobiçadas e, mesmo,
mais romanizadas, e afastadas dos principais circuitos comerciais. Outra
hipótese é uma tradição não correcta, que dava como fruto de conquista regiões
que se tinham rendido aos invasores. A questão resta, pois, em aberto.
Mas, se a tentativa de controlo de todo o território é um facto, até
por razões de segurança, não permitindo (ou procurando impedir) que se
mantivessem bolsas de resistência, desde cedo que a ocupação muçulmana se dirigiu
preferencialmente para as regiões fortemente romanizadas, onde se mantinham com
alguma eficácia a organização tradicional hispano-romana, na sua versão
hispano-goda, e as principais linhas de comunicação. Estes eram, igualmente, e
logicamente, os territórios mais prósperos. Algumas guarnições berberes
garantiam uma cintura de segurança contra as incursões dos homens das
montanhas, agora enquadrados por alguns visigodos rodriguistas que fugiram
perante o avanço muçulmano». In Pedro G. Barbosa, Reconquista Cristã, nas
Origens de Portugal, Séculos IX a XII, Ésquilo, Lisboa, 2008, ISBN
978-989-8092-26-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT