Onde, coisa estranha, nada acontece
«(…) São perguntas como esta que fazem muitas vezes a si próprios, na
rua, os espíritos curiosos. De resto, eles resolvem-se de maneira também
curiosa, isto é, esquecemo-las imediatamente, desde que, no espaço de cinquenta
metros, não consigamos recordar-nos onde é que já vimos aquelas caras. As duas
pessoas a que me refiro pararam de súbito ao avistarem um aglomerado de gente. Momentos
antes qualquer coisa se desviara, num movimento oblíquo; qualquer coisa dera
meia volta em derrapagem: um enorme camião metera travões a fundo, e por isso
encontrava-se agora parado, com uma das rodas sobre o passeio. Imediatamente,
como abelhas em volta da entrada do cortiço, as pessoas haviam-se aglomerado em
redor de um pequeno espaço livre. Via-se o motorista, a descer do engenho,
branco como um papel, a explicar o acidente com gestos desastrados. As pessoas
que se haviam aproximado fitaram-no primeiro, depois mergulharam a vista
cautelosamente nas profundezas da cova em que um homem, com aparência de morto,
tinha sido deitado à beira do passeio. Segundo a opinião geral o desastre fora
causado pela sua distracção. Uma após outra, as pessoas ajoelhavam-se junto
dele, no desejo de fazerem qualquer coisa; desapertaram-lhe o casaco, tornavam
a apertá-lo, tentavam sentar o ferido, deitavam-no de novo; na verdade, apenas
pretendiam ocupar o tempo enquanto a polícia não vinha prestar-lhe os seus
socorros autorizados e competentes.
A dama e o seu companheiro haviam-se aproximado também e, por cima das
cabeças e das costas inclinadas, contemplavam o homem estendido. Então, pouco
à-vontade recuaram um passo. A dama sentiu na boca do estômago um mal-estar que
ela tomou por piedade, era uma espécie de irresolução paralisante. Após ficar
calado um momento, o cavalheiro declaro-lhe: - os carros pesados que
utilizamos no nosso país têm um campo de travagem demasiado extenso. A dama,
sentindo-se consolada com esta frase, dirigiu-lhe um olhar agradecido. Sem dúvida
já ouvira o termo uma vez ou duas, mas ignorava o que fosse o campo de
travagem, e nem isso a interessava; bastava-lhe que aquele horrível incidente
pudesse ser integrado dentro de uma ordem qualquer e transformar-se num
problema técnico que de algum modo lhe pudesse dizer respeito. De resto
ouvia-se já o alarme estridente da ambulância e a rapidez da sua intervenção
tranquilizou todos os que se encontravam à espera. Estas instituições sociais
são admiráveis! Ergueram o sinistrado para o estenderem na maca e empurraram
esta para dentro do carro. Alguns homens envergando uma espécie de farda
encarregaram-se dele e o interior da ambulância, pelo que se podia divisar,
tinha um ar tão limpo e ordenado como uma enfermeira. Lá partiram e todos
ficaram com a impressão, de resto justificada, que acabava de ter lugar um
acontecimento legal e regulamentar». In Robert Musil, Der Mann Ohne
Eigenschaften, O Homem sem Qualidades, tradução de Mário Braga, Livros do
Brasil, Colecção Dois Mundos, 1952.
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