Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
«(…) Havia mais de um ano qu'e se tinham iniciado os preparativos
militares em Espanha. Agora, só faltava nomear o comandante-chefe da expedição,
o que criava ao rei católico um problema muito difícil. Ogeneral mais
prestigioso dessa época, não só em Castela, mas também em toda a Europa, era
Fernando Álvares de Toledo, o velho duque de Alba, então caído em desgraça
perantes, seu régio amo. No entanto, a opinião pública castelhana, como o próprio
Cristóvão Moura, recalcando ressentimentos de uma questão antiga que tivera com
o famoso militar, indicava-o como o chefe que a difícil expedição guerreira
exigia. Como sempre, o rei católico pensou maduramente antes de se decidir. É que
Fradique de Toledo, marquês de Cória, filho do duque de Alba, celebrara tempos
antes um casamento secreto, do qual o monarca discordava, motivo por que desterrara
os duques para o seu castelo de Uceda. Mas parece que Filipe II, não vendo no
momento outro chefe mais capaz, resolveu, por sua conveniência, sempre por
sua conveniência, levantar o desterro ao nobrre militar, nomeá-lo comandante
supremo das operações e ordenar-lhe que seguisse imediatamenüe para Llerena, na
Estremadura espanhola, onde teria de reunir-se ao seu exército.
A 6 de Março de 1580, ainda
as Cortes, em Portugal, não se tinham dissolvido, tratou Filipe II de aproximar-se
da fronteira portuguesa, saindo de Aranjuez para Guadalupe, com a rainha D. Ana
de Áustria, sua quarta mulher, e a sua corte. Durante esse trajecto, a 13 desse
mês, expediu para território luso um correio especial, portador de cartas
dirigidas às seguintes entidades: aos governadores do reino, uma colectiva e cinco
individuais; uma a cada braço do Estado; uma à duquesa de Bragança e seu
marido; outra a António, prior do Crato;
e às câmaras de Lisboa, Coimbra e Évora, uma a cada. Variando apenas no
tratamento, consoante a entidade a que se endereçavam, todas elas repetiam, em
síntese, as razões por que o rei católico se considerava com direito ao trono:
a sua qualidade de mais velho dos sobrinhos varões do cardeal-monarca. Prometia
generosas graças e mercês, se o aceitassem pacificamente como soberano. Dera,
porém, ordem para que as cartas dirigidas aos três Estados, nessa data ainda
reunidos em Cortes, fossem acompanhadas de um Memorial de las grácias y mercedes que el Rey mi Señor concederá a
estos Reynos, quando fuere jurado por Rey e Señor, dellos, en que se incluien
las que les concedió el Serenissimo Rey don Manuel año 99, y outras de grande importância
para el bien universal y particular dellos.
Este Memorial, datado de
Almeirim em 20 de Março, era assinado pelo embaixador Pedro Girón, duque de
Ossuna. Nele se rnencionavam todos os artigos do acordo estabelecido com o
cardeai-rei Henrique, com excepção daquele que proibia Filipe II e seus
sucessores de prover quaisquer ofícios ou cargos em pessoal a quem o cardeal os
tirara. Por outro lado, incluía artigos novos, com as seguintes promessas: Que
os portugueses seriam admitidos aos ofícios da sua Casa, a exemplo do que se
praticava com castelhanos e demais vassalos seus de outras nações; que a rainha
traria, ordinariamente, ao seu serviço, senhoras portuguesas nobres, casando-as
em Portugal ou Castela; que os portos secos da fronteira seriam abolidos; que ordenaria
todas as facilidades possíveis na importação de cereais de Castela; que
mandaria dar 300000 ducados, repartidos da maneira seguinte: 120000 para o
resgate dos cativos, postos à disposição da Misericórdia de Lisboa; 150000 para
instituir e acrescentar depósitos de trigo nos lugares necessitados, conforme entendesse
a Câmara de Lisboa; 30000 para remediar as maiores desgraças causadas pela peste;
que para a provisão das armadas da Índia, defesa do reino, conservação dos lugares
de África e castigo dos corsários, concorreria, quando fosse preciso, com a ajuda
de outros Estados seus e muito maior custo de sua real Fazenda; que não
podendo, pelo governo dos outros Reinos e Estados, que Deus lhe confiou,
residir sempre em Portugal, aqui viveria todo o tempo que pudesse dispensar e, não
havendo emharaço maior, deixaria no reino o príncipe, seu fiiho, para que,
criado entre portugueses, se acostumasse a conhece-los e amá-los. Convém desde
já prevenir que os vinte e cinco capítulos deste Memorial foram mais tarde integralmente reproduzidos na comunicação
feita às Cortes de Tomar, pelo secretário de Estado Miguel Moura, e constam da
Carta patente de 12 de Novembro de 1582,
que devia ser o estatuto pelo qual se regessem os reis castelhanos como reis de
Portugal». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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