«(…) Às palavras de Zacuto dava Isaac as suas achegas, inflamando-se,
subindo o tom de voz, enrubescendo de cóleras várias: - Havia quem nos quisesse
manter por cá, pois nossos ofícios são muito destros, principalmente no fazer
das armas como eu próprio, ou nas artes da cura, como meu irmão, do que poderá
seguir-se muito dano se abalarmos... - Mas o debate nada valeu. O rei lançou um
decreto de expulsão de todos os hebreus, exceptuando os que quisessem receber a
água do baptismo. - E então? -
espicaçou frei Tomás, em expectativa. - Os que saíssem poderiam levar seus bens
e o monarca comprometeu-se a ceder-nos navios em três portos do reino,
deixando-nos livres de partir...
... Não; não foi assim! Num domingo de Páscoa ordenou que nos tirassem
os filhos até à idade dos catorze anos, a fim de serem educados, a expensas da
coroa, em fé cristã... - Só não aconteceu pior porque, avisados, escondemos
muitas das crianças, e muito cristão nos ajudou. Andamos para aqui ainda meio
escondidos... - … Quanto a embarques, não se fizeram... - ... El-Rei mandou
reunir-nos na capital, sendo ali o único posto, e criou mil obstáculos... - ...
Aglomeraram-se mais de vinte mil pessoas, enquanto lhes pilhavam os bens
(muitos, felizmente, conseguimos ocultá-los...). - - Ficámos como rebanho perdido
no paço de estaus, na Ribeira, aos magotes sem eira nem beira... - … Depois
chegaram uns da Igreja Católica e outros de El-Rei e disseram-nos que o nosso
barco já partira e que ou éramos baptizados ou feitos escravos.
- Sem escolha declarada, os da
Igreja atiraram-nos dessa vossa água dita benta que pretende molhar as almas e
secá-las nos modos que não professam... - ... E cá estamos, cristãos como se
tal nascêssemos... Zacuto abriu-se num sorriso: - É claro, bom amigo Tomás, que
a vossa água benta e santa lava a memória em profundidade. Já nenhum de nós se
lembra do Livro de Jacob, nem do Eclesiastes, nem da proximidade do Deus vivo.
Esquecemos, por magia de banho cristão, que o temor de Jeová é o começo da
sabedoria. Ignoramos, de repente, os ensinamentos de Ezequiel e do segundo
Isaías...
Aqui estão os quatro rios do Éden
e da vida das civilizações humanas, nas quatro formas; saem de uma única e só
fonte ternária, que é o olho da divindade; é o som da harmonia das esferas
figurando o olho da razão eterna resplandecendo o seu esplendor no círculo das
três vezes Santa Trindade. Ao centro a Elipse da vida que envia a Elipse
das formas da vida: há duas Elipses na cruz da vida espiritual e duas
Elipses na cruz da vida natural. O centro do Éden é a fonte única do
princípio que projecta todas as formas da Natureza. - Que não se esqueça -
gritou Isaac - que mesmo Jerusalém esteve sob os domínios gregos, que sobre o
altar dos holocaustos do templo foi erguido um altar pagão, a abominação assoladora como diz Daniel, e
o próprio templo foi consagrado ao Zeus olímpico e que os que resistiram foram
massacrados, as muralhas demolidas, e na cidade de David ficou instalada uma
guarnição síria. Começou então uma perseguição cruel, mas não foi nada disso
que deteve o judaísmo.
Frei Tomás estremeceu. Isaac estava exaltado e tornava inútil qualquer
comentário. Zacuto aligeirou: - Escolhemos nós o bom nome de Coelho. Que sirva
a nossa capacidade de reprodução, viva e fértil como a dos láparos, para encher
de mais judeus este mundo perdido... A conversa, que chegara a provocar tensão
e lágrimas, dava com este final motivo para rir aos dois judeus. Frei Tomás
acabou por juntar-se-lhes na chacota. – Bom, quer então dizer que nenhum de vós partiu? Lá isso
não. Sete ou oito dos nossos, os de mais alta posição, um deles era matemático
e astrólogo do rei, outro o mais sábio físico deste reino, bateram o pé e lá
embarcaram... - E nós cá ficámos, a representar com a dignidade possível a peçonha judaica. - E agora, que planos tendes? - Que planos? - responderam à uma
os dois irmãos. E, como se combinados, ainda em coro – Fazer a vida negra a
esse chifrudo que é El-Rei!» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo
de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.
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