Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra, coisa
é o povo.
«(…) O telefone tocou. Fui a correr, estava convencido que era a tia Dada.
Eu não lhe conhecia, mas já tinha falado com ela muitas vezes ao telefone,
então era muito engraçado, porque eu só conhecia a voz dela. Uma vez ela pôs-me
a falar com o filho dela, e passámos a tarde toda a rir, eu e as minhas irmãs, por
causa da maneira como ele falava. Eu quase nem conseguia responder, estive
quase p’ra me atirar no chão de tanto rir, até a minha mãe teve que dizer que
eu estava com cólicas na casa de banho. A minha tia dava menos vontade de rir,
porque ela falava muito devagar, tinha assim, como dizem os mais velhos, e o
Cláudio não me pode ouvir a dizer isto, ela tinha uma voz doce. Mas não era ela ao telefone . Era a Paula da Rádio
Nacional, queria falar com a minha mãe. Eu disse que ela estava no banho, mas
ela quis esperar. A Paula também era outra pessoa que tinha uma voz doce, eu gostava muito de
ouvir a voz dela na rádio, mas assustei-me na primeira vez que lhe vi, porque
pensei que uma pessoa com a voz dela tinha que ser baixinha, e ela era alta.
Quando ouvi a minha mãe dizer sim, vou
perguntar se ele quer..., desconfiei que era qualquer coisa relacionada
comigo.
- Olha, a Paula vai fazer
amanhã. um programa sobre o 1.º de Maio e queria recolher depoimentos de
pioneiros… - Tu queres ir? - Depoimentos, é ir lá falar, né? - eu, embora já soubesse. - Sim, preparas
qualquer coisa e amanhã ela vem te buscar para irem fazer uma gravação. - Mas é para um programa? - Mais ou
menos, acho que é para passar no noticiário, é uma mensagem das crianças para
os trabalhadores. - Então vou ter que fazer
uma redacção, mãe? Ai, isso já da muito trabalho... - Não, não tens que
fazer urna redacção porque não te vão deixar ler a redacção, são só algumas palavras…
- Tu podes me ajudar? - Com o
texto não, filho... Tu escreves o que quiseres, eu posso e corrigir-te os erros,
mas o texto tem que ser teu. - Tá bem. Quero ir conhecer a rádio. Se calhar ela
deixa-me ver os instrumentos todos… - Sim, talvez, tens que lhe pedir.
Assim já era hora do almoço. As minhas irmãs chegavam da escola, o meu
pai também chegava. A casa ficava mais barulhenta, mais o barulho do rádio na
sala para ouvir as notícias, mais o rádio do camarada António ligado na
cozinha, mais a minha irmã caçula que queria contar tudo o que se tinha passado
na escola nessa manhã. Ela sabia que tinha que se despachar porque quando fosse
uma hora em ponto ia ter que parar o relato para deixar os pais ouvirem as
notícias. Nós ficávamos um bocado aborrecidos com as notícias, porque era
sempre a mesma coisa: primeiro eram as notícias da guerra, que não eram diferentes
quase nunca, só se tivesse havido alguma batalha mais importante, ou a UNITA
tivesse partido uns postes. Aí dava risa, porque todo mundo ia dizer na mesa
que o Savimbi era o Robin dos Postes. Depois tinha sempre algum ministro
ou pessoa do birô político a dizer mais umas coisas. Depois vinha o
intervalo com a propaganda das FAPLA. Ah, é verdade, às vezes também falavam da
situação na África do Sul, lá do ANC, enfim, isso eram nomes que uma pessoa ia
apanhando ao longo dos anos. Também se aprendia muita coisa, porque a propósito
disso, por exemplo, do ANC, é que o meu pai nos explicou quem era o camarada Nelson
Mandela, e eu fiquei a saber que havia um país chamado África do Sul
onde as pessoas negras tinham que ir para casa quando tocava a campainha às
seis da tarde, que elas não podiam andar no machimbombo com outras
pessoas que não fossem negras também, e até fiquei bem espantado quando o meu
pai me disse que esse camarada Mandela já estava preso há não sei
quantos anos. Foi também assim que percebi porquê que os sul-africanos eram
nossos inimigos, e que o facto de nós lutarmos contra os sul-africanos significava
que nós estávamos a lutar contra alguns
sul-africanos, porque de certeza que essas pessoas negras que tinham um machimbombo
especial para elas não eram nossas inimigas. Então também percebi que, num
país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo.
Depois destas notícias, e destas conversas, vinha o desporto. Mas
também era sempre o Petro ou o D'Agosto que ganhava, bem, a Taag depois
ainda melhorou uns coche, até deu 11 a 1 noutra equipa, coitados! O Cláudio
estigou mal o Murtala no dia seguinte, acho que o Murtala até chorou. À uma e vinte,
quando os meus pais tomavam café, desligaram o rádio. O telefone tocou e agora
eu tinha a certeza que era a tia Dada». In Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Editorial
Caminho, Lisboa, 2003, ISBN 972-21-1524-3.
Cortesia de Caminho/JDACT