[…]
Eis como ele prossegue,
depois da última quintilha que fica transcrita:
Mas ó tu, terra de gloria,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na
memoria,
Se não na reminiscência;
Que a alma é tábua rasa,
Que, com a escripta doutrina
Celeste, tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe á pátria divina.
Não é logo a saudade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do ceu,
Daquella santa cidade,
Donde esta alma
descendeu.
E aquella humana figura,
Que cá me pôde alterar,
Não é quem se ha de
buscar;
É raio da formosura.
Que só se deve de amar.
Que os olhos e a luz, que
ateia
O fogo que cá sujeita,
- Não do sol, nem da candeia
É sombra daquella ideia,
Que em Deus está mais perfeita.
E os que cá me captivaram,
São poderosos affeitos,
Que os corações têm sujeitos.
Sophistas, que me ensinaram
Maus caminhos por direitos!
Destes o mando tyranno
Me obriga, com desatino,
A cantar ao som do dano
Cantares de amor profano,
Por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co
santo
Raio, na terra da dor,
De confusões e de espanto,
Como hei de cantar o canto,
Que só se deve ao Senhor?
Tanto pode o beneficio
Da graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude;
E o que eu tomei por vicio
Me faz grau para a virtude.
E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular belleza
Para a belleza geral.
NOTA: Quantas lagrimas não
estão por detrás destes cinco versos! Que dolorosa luta não supõem eles, travada
durante longos meses no cérebro e no coração do amargurado poeta! Que abismo entre
estas redondilhas e as que, em diferentes edições, se lhes seguem quase
imediatamente:
Dama de estranho primor.
Se vos for
Pesada minha firmeza,
Olhai não me deis tristeza,
Porque a converto em amor.
Se cuidais
De me matar, quando usais
De esquivança,
Irei tomar por vingança
Amar-vos cada vez mais!
…………………………..
E para não sucumbir, o pobre
coração dilacerado refugia-se no amor divino, como tantos outros o tem feito em
crises análogas. Este estado de espirito, porém, dada a índole do poeta, não deve
ter sido muito duradoiro.
E o convertido poeta promete
nunca mais cantar o amor profano, nem deixar-se dominar por mundanos
acidentes.
Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,
E tome a lyra dourada.
Para só cantar de ti;
Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal,
Mas dos vicios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.
E se eu mais der a
cerviz
A mundanos accidentes,
Duros, tyrannos,
urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes
;
E tomando já na mão
A lyra santa e capaz
De outra mais alta invenção,
Calle-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz.
Ouça-me o pastor e o rei;
Retumbe este accento santo;
Mova-se no mundo espanto.
Que do mal que já cantei
A palinodia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão capitão
Da alta torre de Sião,
A qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.
E o poeta insiste em invocar
o auxilio divino contra os afectos humanos, que o têm dominado.
E aquelle poder tão duro
Dos affectos com que venho,
Que incendem alma e ingenho,
Que já me entraram o muro
Do livre arbítrio que tenho.
Estes, que tão furiosos
Gritando vem a escalar-me,
Maus espirites danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derribar-me,
Derribai-os, fiquem sós,
De forças fracos, imbeles,
Porque não podemos nós
Nem com elles ir a vós,
Nem sem vós tirar-nos delles.
Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se vós, santo capitão.
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
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