«(…) André dela se serve a dobrar, como serva e
como fêmea, gozada, enganada pelo filho-família que queria provar-se capazde
seduzir e de surpresa tomar patega fácil, toda tremente quando a informou que
desta não escapa, adeus ó cabaço, ele contente por me ter tirado os três, por
ter esperado, não dói em havendo saber da parte dele e dela a sorte de
encontrar em cima de si um tipo como eu, civilizado, talvez não muito terno, um
que nem contigo dorme, te come só e vai-se embora, mas que ao menos tem
técnica, não te arranja traumatismo, não te estraga para o resto da vida, pelo
contrário, a paixão não a larga, custa-lhe aceitá-lo, tudo tresanda tão a
triste, romance de escada de servir, pior ainda por ter pena dele que dona
Marina, a senhora, lhe confessou em segredo andar doente, não explicou que doença,
provavelmente má vida lá na Lísbia, com marafonas, galdérias, putéfias,
mulheres de peste. Piedade não lhe perdoa, a André, o aumentar o reino da escravidão
que descobre em toda a parte, a mãe morreu-lhe a ela de parto, talvez por não
haver médico perto , talvez apenas azar, de qualquer modo inculpada pelo pai
bruto e boçal que a deixou e foi-se embora, aos avós abandonada que lhe deram este
nome para dela terem piedade, como se o nome ajudasse, com suas letras
minguadas, a vencer, exorcismar a sorte amarga e avara, onde lhe comprassem
força de braços e artes de preparar todo o prato. Saída não me sobrava além de
vir oferecer-me à deste senhor Francisco, bom lavrador, mau marido, mas isso
não é comigo, tem casa posta à amiga, como o menino André pensava fazer comigo,
amásia, amancebada, deusmelivre.
Arminda quer subtrair-se à opacidade que ocupa a
casa, reflectida no país que o presente torna totalmente cercado de muralha,
assaltada por violentos mares dum lado, do outro lava solidificada, gretada
entre margens deixadas descarnadas, tudo pedra agressiva, ângulos cortantes,
rocha ou marisco putrefacto sob nuvens baixas, inumeráveis bátegas do mês mais
cruel do ano, nestas moradas de pé direito alto que o paredão do passado
protege, por enquanto, da nortada. Arminda recorda o sonho em que ágil escala
até ao cimo do dique, sabe que acaba de entrar em vigor lei laboral, que os proletários
consideram, e com eles Samuel, marcial para quem trabalha, sem direito a
levantar a cabeça e protestar, quase igual a encostá-los à parede e disparar, o
que até seria feito se não fossem necessários para accionar as mil máquinas,
para fabricar novas máquinas que produzem outras máquinas para que a grande
engrenagem da maquinaria magna não pare enquanto os astros não pararem de girar.
Contas de banco a prazo, rodas dentadas, balanço, balancete do razão, desrazão
organizada, conta-corrente contra todas as correntes, ratios várias, percentagens, juízos prudenciais, previsões gazivas,
cataclismos provocados, golpes, contragolpes controlados pelos depósitos à
ordem, basalto rolado desde a falésia vulcânica a prumo sobre o turvo abismo ao
fundo em cujas praias estão, cor creme nívea, carros de polícia donde saem
molossomens carregados de colossais botas cardadas, capacetes com viseiras,
cacetes, cassetetes de borracha compacta, bastões que dão choques eléctricos,
cães amestrados para matar, cavalos dos que sabem pisar e escoucinhar. Os caras
gesticulavam que Arminda e Samuel descessem ou atiravam, regressassem na brasa
à poluída passividade que o Estado lhes reservava, marginais, maioria submetida
a ridículos títeres que apesar de poucos pareciam demais, tal o talento para adormecer
a massa encefálica das massas, hipnotizadas, amansadas, arrebanhadas à porrada
mal quisessem arrebitar, assim Samuel e Arminda se vêm forçados a desistir,
cair na matéria morna amniótica em que muitos se afundam, só alguns conseguem
manter de fora a tola. É sábado, longe de Samuel sinto a sua falta, em lugar
dele, na cama ao lado, está Sónia de polegar na boca e olhos fechados,
respiração regular, amiga da minha idade mas mais livre porque os pais em
Angola não a podem chatear como os meus fazem por andar com Samuel que não
conhecem, basta-lhes saber que é operário na Cuf, ninho de víboras para eles,
dragões dispostos a comer-lhes pão e filhas, vou fazer vinte e um, não me podem
impedir se ele quer viver comigo, tenho mais sorte que Sónia que gosta de André
que não gosta de ninguém nem se calhar de si mesmo». In Almeida Faria, Cortes,
Editorial Caminho, o Campo da Palavra, Lisboa, 1986.
Cortesia de Caminho/JDACT