Estelas
«(…) O Comentário acrescenta:
Cada templo tinha a sua estela.
Por meio da sombra que projectava media-se o momento do sol. O mesmo se
continua a passar. Nenhuma das funções ancestrais se perdeu: tal como a do olho
da estela de madeira, a estela de pedra conserva o uso do poste
sacrificatório e mede ainda um momento; mas já não um momento do sol do dia a
projectar seu dedo de sombra. A luz que o marca não cai do Cruel Satélite e não
gira com ele. É uma luz de conhecimento no fundo de cada um: o astro é íntimo e
o instante perpétuo. O seu estilo deve ser aquilo que não se pode dizer que seja
uma linguagem, porque não encontra ecos entre as outras linguagens e não pode
servir para as relações quotidianas: o Wen. Jogo simbólico em que cada
um dos seus elementos, que pode ser tudo, apenas retira a sua função do lugar
que no presente ocupa; e o seu valor do facto de estar aqui e não ali.
Acorrentados por leis claras como o pensamento antigo, e simples como os
algarismos musicais, os Caracteres pendem uns dos outros, agarram-se e
entreligam-se numa irreversível rede, refactária até a quem a teceu. Uma vez
incrustados na lápide, que entranham de inteligência, aí estão eles,
despojando as formas da movediça inteligência humana, agora transformados em
pensamento da pedra, cujo grão assumem. Daí aquela composição dura, aquela
densidade, aquele equilíbrio interno e aqueles ângulos, qualidades necessárias
como ao cristal as espécies geométricas. Daí aquele desafio a quem lhes fará dizer
o que guardam. Desdenham de ser lidos. Não pedem voz nem música. Desprezam os
tons mutáveis e as sílabas que os aperaltam ao acaso das províncias. Eles não
exprimem, significam, são.
Não pode deixar de ser bela, a sua grafia. Tão próximos das formas originais
(um homem sob o telhado do céu; uma seta lançada contra o céu; o cavalo, de
crinas ao vento, crispado sobre as patas; os três picos de um monte; o coração,
e as suas aurículas, e a aorta), os Caracteres não aceitam nem a
ignorância nem a imperícia. Porém, sendo visões dos seres através do olhar
humano, correndo pelos músculos, pelos dedos e por todos esses nervosos
instrumentos humanos daí recebem uma deformação por onde a arte se entranha na
sua ciência. Hoje correctos, e só isso, eram cheios de distinção na época
Yong-tcheng; longamente estirados no tempo dos Ming, como elegantes dentes de
alho; clássicos n tempo dos Thang; largos e robustos no dos Han: sobem até
muito mais alto, até aos símbolos nus vergados à curva das coisas. Mas é na
época dos Han que se detém a ascendência da Estela.
É que a lápide torna os caracteres cegos à inexistência ou ao horror de
um rosto sem feições. Nem aqueles tambores gravados nem aqueles postes informes
são dignos do nome de Estela;
menos ainda a inscrição de acaso que, privada de pedestal e de espaço e ar
quadrangular em seu redor, não passa de uma brincadeira de quem se passeia
enquanto fixa uma historieta: batalha ganha, amante rendida, e toda a literatura.
A direcção não é indecisa. Virada para o Meio-Dia se a Estela contém decretos; a
homenagem do Soberano a um Sábio; o elogio de uma doutrina; um hino de reinado;
uma confissão do Imperador ao seu povo; tudo o que o Filho do Céu, sentado de frente
para o Meio-Dia, tem o dom de promulgar». In Victor Segalen, Stèles, Terre
Jaune, Pequim 1912, Edições La Difference, Paris, 1989, Edições Cotovia,
Lisboa, 1996, Fundação Oriente, ISBN 972-8028-72-5.
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