Ideia Geral do Romantismo
Como a Europa se Esqueceu da
Edade Media
«(…) As linguas românicas,
por esta dependência constante da auctoridade do latim, soffreram uma aproximação
artificial da affectada urbanidade; os grammaticos, imbuídos dos typos linguisticos
dos escriptores do século de Augusto, chamaram ás construcções mais peculiares
e originaes das novas linguas, idiotismos! Se observamos nos factos
jurídicos dá-se a mesma violação; o direito communal, passado á forma escripta no
meio das grandes luctas das classes servas que se levantaram á altura de povo, foi
de repente substituído pela vontade ou arbítrio real; o renascimento do direito
romano interessava a realesa e por isso voltou ao seu vigor, serviu de modelo para
a codificação. Em quanto á poesia a mesma deturpação; as Canções de Gesta, espontâneas e repassadas das tradições mais
vivas das luctas para a civilisação moderna, foram substituídas pelos feitos dos
gregos e romanos, que terminaram no extenuado idylico do paiz de Tendre,
dos intermináveis romances de Brutus
e Clelia, e das imitações de Fénelon,
e dos embellesados polvilhos de Tressan.
A epopea da Edade media,
inspirada pela obra da consolidação das nacionalidades, perde o seu espirito para
calcar-se sobre os moldes de Virgílio. Ariosto ridicularisa o fundo
épico das principaes Gestas; Camões imita a Eneida, para cantar
a nacionalidade portugueeza; Tasso
segue a mesma corrente erudita para cantar o feito que assegurou indirectamente
á sociedade medieval a sua estabilidade. Na
arte repete-se a mesma violação; a architectura gothica é despresada pelas
ordens gregas; o estylo ogival, creado ao mesmo tempo em que o povo assegurava a
sua independência de terceiro estado, e assimilava á sua indole aryana o christianismo
semita, ligado á vida nova por esta augusta tradição da crença e da liberdade, foi
banido das construcções para seguir-se a louca parodia de uma arte que nada tinha
de commum com o estado actual. A historia, escripta sobre a pauta rhetorica de Tito-Livio,
tornou-se por essa falsidade da narração declamatória, a effemeride das côrtes.
Imitou se o theatro romano; nas tragedias chegou-se a ignorar completamente a
existência do povo; em vez de crear, traduziu-se e commentou-se laboriosamente os
escriptos que nenhumas ideias trouxeram á civilisação, obras de rhetoricos, que
empeceram o labor intellectual pelo perstigio da auctoridade. A critica tornou-se
uma simples comparação material ou craveira dos typos do bello da Grécia e de Roma.
As consequências palpáveis d'esta longa desnaturação vêem-se no século XVI: A egreja
proclama-se aristocratica, no Concilio de Trento; a realesa, cria os exercitos
permanentes, e torna-se cesarista, isto é, corrompendo para dominar com
segurança. A unidade papal foi quebrada pela
Reforma; o cesarismo foi sentenciado e executado pela Revolução. Mas o estado de
atraso em que ficaram os espiritos, desnorteados do seu fim, durou mais algum tempo;
os factos de prompto se tornam consummados, as ideias por isso que vão mais longe,
difficilmente se recebem.
A Allemanha, original pela sua raça forte, ainda rica de mythos próprios,
com uma lingua de radicaes, com um individualismo espontaneo e bellas tradições
épicas, desnatura-se ante o catholicismo, fica imitadora da poesia da Provença,
esquece as suas epopêas, adopta a Biblia em latim, gasta as suas forças em uma phantastica
reconstrucção do Santo Império, e por fim anulla-se na imitação servil da
litteratura official da côrte de Luiz XIV. Na Inglaterra, o veio normando abafa
por vezes a genuina impetuosidade saxónica; predominam os imitadores clássicos,
os Pope, os Dryden, os lyricos lakistas. Mas n’estes dois povos
havia um núcleo de tradições vigorosas resultantes da vitalidade da raça; esta força
natural havia de impellil-as á originalidade. De facto a Allemanha, resgata-se da
subserviência da França, e imitando provisoriamente a litteratura ingleza, achou
de prompto a sua feição nacional. A França, a nação que provocou a creação da poesia
moderna em todos os povos, pelo enthusiasmo que produziam as canções dos seus trovadores,
pelo interesse que se ligava ás Gestas dos jograes, esqueceu este passado
esplendido, para contar a actividade litteraria desde Malherbe». In
Teófilo Braga, História do Romantismo em Portugal, Ideia geral do Romantismo,
Garrett, Herculano, Castilho, Nova Livraria Internacional, Imprensa Sousa
Neves, Lisboa, 1880.
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