Um toledano diferente dos outros
«(…) Verás a descrição que aí é feita do palácio que Salomão mandou
construir, não longe do templo, na outra extremidade do átrio. Nesse palácio,
havia uma fonte magnífica cuja bacia, devido às suas dimensões, era comparada a
um mar de bronze. Ora essa bacia repousava sobre doze bois, três olhavam para
norte, três para ocidente, três para sul e três para oriente; o mar erguia-se à
sua frente, e todas as garupas estavam voltadas para dentro. E sabes com que frutos estavam ornados os capitéis?
Com
romãs.
Quando decidi construir esse soberbo pátio à volta da fonte, inspirei-me
em Salomão. Pensei que esse rei, esse sacerdote, esse arquitecto, esse sábio,
devorado pelo zelo de Deus, merecia todo o nosso respeito. Tal como ele, quis
aproximar-me do Altíssimo através de uma bela obra. O belo não é o mais
maravilhoso reflexo de Deus que
possuímos? O meu príncipe terminou com este comentário singelo: Não ignoras que o arquitecto a quem confiei
os trabalhos é um cristão do Norte. Com o meu consentimento, imprimiu-lhes a
sua marca: as galerias cobertas que rodeiam o pátio lembram estranhamente os
claustros dos seus mosteiros onde os monges se passeiam em silêncio. Assim, num
mesmo espaço, os três troncos da família do Livro estão reunidos para celebrar
a beleza. Calámo-nos e reflectimos os dois em silêncio. Não ouso dizer
ao meu príncipe que, para mim, Granada não é mais do que um reflexo da beleza
de Toledo, e Toledo um reflexo do paraíso.
Tulaytuli abre muito os olhos, o primeiro clarão da alvorada rasga o
horizonte. Nessa praia de Cádis coloca-se em frente ao oceano. Está na hora da
oração da autora. Prosterna-se. Chora e reza. Reza e chora. In Louis
Cardaillac.
A Chegada dos Cristãos. O Refluxo do Islão Espanhol
Potência regional dominante, a Castela de Afonso VI estende o seu protectorado
à totalidade da Espanha muçulmana e apodera-se de Toledo em 1085. Durante mais de um século, a
cidade será fronteira da cristandade em relação ao Islão. Ocorrem trocas
culturais entre Castelhanos, Francos,
que se juntaram aos conquistadores, e Muçulmanos que nela permaneceram. A
partir do século VI, o mundo cristão do Ocidente parece uma praça cercada.
Política, demográfica e intelectualmente, fechou-se sobre si próprio. Cerca do
ano 1000, sofre uma profunda renovação
e evidencia, em todos os domínios, um dinamismo pouco habitual: reorganização
dos estados, ascensão do papado e das ordens religiosas, renascimento
intelectual em Itália e em França. Estende progressivamente as suas fronteiras
para o norte, a Europa Central, e sobretudo o sul e o leste mediterrânico onde
o arraem o ouro mas também os elementos de saber, cultura antiga, contribuições
árabes e orientais, de que necessita para alimentar o seu crescimento. É
exigente e conquistador, oscila entre a guerra e a troca.
O contacto entre os dois mundos é particularmente intenso em Espanha,
por ser duradoiro e por não se reduzir à guerra, mesmo no domínio político. A
importância e a versatilidade dos jogos de alianças entre soberanos muçulmanos
das taifas e soberanos cristãos, são
bem prova disso. Mas também porque os dois campos, muçulmano e cristão, estão
bem integrados nos seus universos respectivos e, por conseguinte, prontos a
servir de difusores. A tomada de Toledo, na sequência de um acordo ambíguo, mas
mesmo assim acordo, e no respeito relativo do outro, é símbolo disso mesmo.
Marca também o confronto dos dois mundos e a concorrência que os opõe: os
muçulmanos são progressivamente expulsos da cidade; as reacções almorávida
e, em seguida, almóada, separadas por um intervalo onde a compenetração
recomeça, bloqueiam o avanço cristão e fazem de Toledo, durante mais de um
século, um local de fronteira, um ponto de passagem obrigatório entre as duas
culturas. Conscientes deste facto, embriagados pelos êxitos militares que, pontualmente
foram impressionantes, os reis de Castela puderam proclamar-se imperadores. Em
meados do século XIII, o Islão ocidental desmorona-se e, em alguns anos, perde
Valência e Andaluzia: na verdade, o reino de Granada apenas subsiste como
colónia genovesa.
Fim de Abril de711. Tariq, um general berbere enviado por Muza
que governa a África do Norte em nome de Walid I, o longínquo califa de
Damasco, sucessor do profeta, desembarca em Algeciras. Dois meses mais tarde,
nas margens do rio Guadalete, aniquila o exército de Rodrigo, o último rei
visigodo, traído por uma parte dos seus. Tariq marcha sobre Toledo, a capital
do reino, para a pilhar. Toma-a sem resistência, dado que a maior parte da
população a abandonara. O saque é considerável. Muza, alertado, acorre com
reforços. Em cinco anos, toda a Espanha cai nas mãos de um punhado de guerreiros
que aí dominam cerca de dois milhões e meio de cristãos. Pequenos grupos de
refugiados resistem ainda nas montanhas das Astúrias e na Galiza; há bolsas de
resistência no País Basco, nos altos vales dos Pirenéus; mas nada disso conta».
In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT