terça-feira, 12 de novembro de 2013

O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto. António Cândido Franco. «… circum-navegação da África com a passagem do Sueste seguida alguns anos depois pela do Sudoeste, são alguns dos passos no sentido duma unidade física da Terra, que é simultaneamente sentida como unidade cultural ou social da humanidade»

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O Mar e o Marão
«(…) A descoberta dum novo continente, com as viagens de Diogo de Teive, João Vaz Corte-Real, Cristóvão Colombo, Pero Barcelos e João Fernandes Labrador, bem como a circum-navegação da África com a passagem do Sueste seguida alguns anos depois pela do Sudoeste, são alguns dos passos no sentido duma unidade física da Terra, que é simultaneamente sentida como unidade cultural ou social da humanidade. Esta unidade cultural ou social da humanidade constitui, segundo Jaime Cortesão, o grande feito e a grande glória dos portugueses. A luminosidade, a grandeza ou a glória deste primeiro ciclo da nossa história tem, no entanto, como acontece a tudo o que é luminoso, as suas próprias sombras. São manchas cegas, pontos que se tornam lastro de obscuridade e trevas, nódoas que mancham inevitavelmente qualquer perfeição absoluta que se queira atribuir ao nosso Passado. A escravatura, com todos os valores de degradação humana que lhe estão associados, e mesmo tendo em conta as atenuantes de época e de contexto em que teve lugar, constitui desde logo o primeiro indício seguro das grandes imperfeições do nosso passado. As páginas da Crónica de Guiné de Gomes Eanes Zurara, que ao contrário do que se tem dito nada têm de laudatórias, são neste sentido dum realismo cruel que convém, se não quisermos correr o risco de nos enganarmos sobre o próprio presente, nunca esquecer.
Recordar-se-á sempre, até para perceber o Futuro de que o Passado parece ser sempre o sinal mais avançado, o capítulo XXV do livro de Zurara, como um dos mais pungentes e humanos, de entre todos os que ele escreveu, pelas descrições que faz e pela razão com que aprecia as próprias acções dos seus contemporâneos. O capítulo XXV da Crónica de Zurara, que tem por título Como o Autor aqui Razoa um pouco sobre a Piedade, que Ha daquelas Gentes, e como Foi Feita a Partilha, revela-nos uma das partes do clima em que foram desencadeados os descobrimentos físicos, descrevendo um mercado de escravos na cidade de Lagos no Algarve, residência então, do Infante Henrique. O Infante era, neste caso, a causa, pelos direitos que lhe tinham sido outorgados pelo regente seu irmão, Infante Pedro, desta partilha. A partilha ocorrida logo nos primeiros anos de exploração da costa africana, prende-se com a viagem, a primeira que foi talvez declaradamente organizada por um particular (daí a necessidade de se proceder a uma partilha), de Lançarote de Lagos, almoxarife desta cidade algarvia, à costa da Guiné, e mais particularmente ao Golfo de Arguim.
Estávamos no início da década de 40, mais propriamente em 1444, numa altura em que ainda não se tinha atingido o rio Senegal, que faria depois a separação entre azenegues e negros, e Gil Eanes que dez anos antes tinha trazido do Bojador as rosas de Santa Maria é um dos que, segundo Zurara, acompanha a expedição do almoxarife de Lagos a Arguim com a latitude de 24º N (segundo indicação de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo De Situ Orbis). Em Arguim, ilha onde Afonso V mandaria pouco depois, por intermédio de Soeiro Mendes Évora, erguer uma fortaleza comercial, espécie de feitoria, fazem nesse ano de 1444 os portugueses mais duma centena de cativos, passando depois a outros lugares, como Tider, onde aprisionam mais pessoas, independentemente da idade e do estado». In António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989, IADE, Lisboa.

Cortesia de IADE/JDACT