«Tendo como referência a
obra monumental de Vitorino Magalhães Godinho, desenvolvem-se três temas
fundamentais:
- a história é geográfica;
- a história fala de uma actividade pluridimensional, mas única;
- o passado relativiza-se no presente. A concluir, esboça-se um programa de trabalho para o novo século assente no conceito de história total.
Os descobrimentos não foram somente a descoberta de territórios
longínquos pelos Portugueses ou mesmo pelos Europeus; foram também a descoberta
de uma nova construção social de que estas viagens, estas rotas oceânicas,
estas trocas comerciais faziam parte, a construção da economia-mundo
capitalista em que todos hoje vivemos. A descoberta dessa estrutura ficou a
dever-se a um grupo de investigadores, a bem dizer, um grupo de hereges, que
escreveram em meados do século XX. Entre estes textos transformadores,
encontra-se a obra monumental de Vitorino
Magalhães Godinho, Os
Descobrimentos e a Economia Mundial (1963). Magalhães Godinho
oferece-nos a conclusão de mais de mil páginas no seu parágrafo de abertura,
que vale a pena ler com atenção:
- Modernidade ou medievalidade dos séculos XV e XVI: qualificações demasiado globais, de flagrante imprecisão, para nos servirem de ferramenta na análise de expansão europeia que então se processa. Pense-se o que se pensar dessa controvérsia sempre em aberto, alguns factos são incontestáveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaço, a sua maneira de sentir e de entender as próprias relações humanas é impregnada pelo número, ao mesmo tempo pela consciência da mudança; a pouco e pouco cria-se um critério para distinguir o fantástico do real e o impossível do possível; transformam-se, em complexidade contraditória, motivações e ideais; a produção dos bens multiplica-se, o mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica, forma-se o Estado burocrático e centralizado de matiz mercantilista.
O mercado à escala do mundo torna-se o vector dominante da evolução económica,
eis o tema que Magalhães Godinho põe em primeiro plano. A continuação do seu
livro, contudo, não fala do mercado, mas conta-nos a evolução dos mapas-mundo
europeus, uma viagem do fantástico ao real até que a medida do tempo e do
espaço vá infiltrar-se cada vez mais
em todos os aspectos da vida quotidiana. E Magalhães Godinho termina a
sua introdução recordando-nos o que escrevia Tomé Pires no início do século
XVI:
- O qual trato de mercadoria é tam necessário que sem ele se non susteria o mundo; este é que nobrece os Regnos, que faz grande as gentes e nobelita as cidades, e o que faz a guerra e a paz do mundo. É hábito o da mercadoria limpo. Nom falo no meneo dela, havido em estima: que cousa pode ser melhor que a que tem por fundamento a verdade?
Magalhães Godinho chama
a isto a palavra decisiva. Mesmo
assim, não se trata apenas da troca de bens. É todo um sistema que se constrói.
Magalhães Godinho escreveu um verbete para o 2.º volume do Dicionário de História de Portugal sobre os complexos históricos-geográficos no
qual insiste que a economia se insere num complexo de estruturas, um sistema (ele
não recua perante esta palavra), e acrescenta:
- a noção de estrutura tanto opera quanto à sociedade global como quanto aos grupos, sectores de actividade, regiões e localidades que a integram, sendo sempre o meio de apreender analítico-sinteticamente (por explicação-compreensão) o facto social total.
Ora aí está! A história total apresenta-se-nos como uma visão
fundamental, uma exigência, um fardo. Teremos
nós podido assumir essa tarefa? É tema para discussão. Começarei com
uma expressão que Magalhães Godinho utiliza no seu livro recente, Le devisement du monde (2000),
ao qual dá o subtítulo Da pluralidade
dos espaços ao espaço global da humanidade, séculos XV-XVI. No título
do primeiro capítulo, ele fala da invenção
do mundo, no seio da qual estava a dar-se, aparentemente, a formação da Europa. O mundo não
existia antes do século XV? A
Europa não era já uma realidade muito antiga?
Não, não era, porque falar assim
seria reificar estes termos descritivos, que devem, isso sim, ser reservados às
realidades nos espíritos das pessoas e à substância das suas vidas». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da
economia-mundo, Revista Crítica
de Ciências Sociais, nº 69, Outubro 2004, Comunicação ao colóquio Le
Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho,
Paris, Dezembro 2003, tradução de António Sousa Ribeiro.
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