De acordo com o original
«(…) O que sentia hora a
hora só o poderia explicar tentando dizer o que era o amor…
Amor é um fogo que arde
sem se vêr;
é ferida que doe e não
se sente;
é um contentamento
descontente;
é dôr que desalma sem
doer.
Pois era isto mesmo o
que elle sentia, esta vaga anciedade, o andar solitário por entre a gente, o estar
preso por vontade, um servir a quem vence o vencedor… N'esta conjunctura chegou
a Coimbra um subtil boato referido n'uma carta de Lisboa para o mosteiro de
Santa Cruz: que António Lima queria maridar a filha na corte. Este inesperado
golpe feriu profundamente a alma do poeta. Era pois certo que d'elle se havia esquecido inteiramente?! Oh! Quem
a Luiz de Camões
………..dissera
que d'amor tão profundo
o fim podesse vir eu
algum'hora!
A principio, esse vago
rumor desalentara-o, já não era lembrado por aquella em quem não deixara de
pensar um só instante…
Por que te vás de quem
por ti se perde,
para quem pouco te ama?
(suspirava)
e o ecco lhe responde: pouco
te ama.
Finalmente, elle, sempre
forte, mesmo nas fraquezas do amor, resolvera voltar á corte, queria acabar a
vida na triste consolação de vêr mais uma vez a formosa que o esquecera. Despediu-se
d'essa florida terra, da bella Coimbra, onde tempo longo passou folgando com a
vida, e onde sonhara que não haveria no mundo quem pudesse apartal-o d’aquella
gentil senhora. Queria despedir-se d’ella para todo o sempre, e depois… viver
ou morrer abraçado com a urna onde guardasse as cinzas d’aquelle vão pensamento…
Rememorava, como era natural, os tempos passados, o dia em que pela primeira
vez a vira, a primeira occasião em que lhe fallára… Coimbra já ficava longe, e
a sua saudade voltava-se ainda para avistal-a, como Orpheu para vêr Eurydice:
Vão as serenas aguas
do Mondego descendo,
e mansamente até o mar
não páram:
por onde as minhas maguas
pouco a pouco crescendo,
para nunca acabar se começaram.
Ali se me mostráram
n'este lugar ameno,
em qu'inda agora mouro,
testa de neve e d'ouro;
riso brando e suave:
olhar sereno;
um gesto delicado
que sempre n'alma me
estará pintado.
Ardia-lhe o coração em
impaciências de chegar a Lisboa. D. Maria de Távora, a meiga companheira de Catharina,
foi a alma que Luiz de Camões escolheu para receber a triste confidencia do seu
desanimo, e dos receios que o pungiam por se vêr preferido por quem iria talvez
desposal-a sem amal-a. Certificou-o D. Maria de que Catharina não pensava em
tomar marido, e de que na sua memoria estava ainda viva a lembrança cuidadosa d’aquelles
breves dias de Coimbra. Mas Calharina, aggravada com as suspeitas de Camões,
esquivava-se a vel-o, e nem a mediação da sua terna amiga conseguia abrandal-a.
O que não pôde, porém, fazer a solicitude de D. Maria de Távora logrou-o a lyra
de Camões, vibrando este sublime grito de desespero:
Dae-me úa lei, senhora,
de querer-vos,
porque a guarde sob pena
de enojar-vos;
pois a fé que me obriga
a tanto amar-vos
fará que fique em lei de
obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão
só vêr-vos
e dentro na minha alma
contemplar-vos;
que se assi não chegar a
contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a
aborrecer-vos.
E se essa condição cruel
e esquiva
que me deis lei de vida
não consente,
dae-m'a, senhora, já,
seja de morte.
Se nem essa me daes, é
bem que viva,
sem saber como vivo,
tristemente;
mas contente estarei com
a minha sorte.
O amor rendeu-se á
poesia. O coração namorado não se agasta para resistir, senão para se deixar
vencer mais depressa. A formosa esquiva consentiu finalmente em deixar-se vêr
de uma das janelas do paço da Ribeira. Os olhos de Camões absorviam-n’a cubicosos.
O idyllio da janella começara desde esse momento. Na alma de Camões irrompera
de novo, vehemente, impetuoso, o grande incêndio que ao mesmo passo o queimava e
fortalecia:
Ferido sem ter cura
perecia
o forte e duro Télepho
temido
por aquelle que na agua
foi mettido
e a quem ferro nenhum
cortar podia.
Quando a Apollineo Oraculo
pedia
conselho para ser
restituido,
respondeu-lhe, tornasse
a ser ferido
por quem o já ferira, e
sararia.
Assi, senhora, quer
minha ventura
que ferido de vêr-vos
claramente,
com tornar-vos a vêr
Amor me cura.
Mas é tão doce vossa
formosura,
que fico como o
hydropico doente,
que bebendo lhe cresce
mór seccura.
………………………….
Naquelles tempos, as bellas senhoras, debruçadas no peitoril da
janella, ditavam leis ao mundo». In Alberto Pimentel, A Varanda de Nathercia,
pq
9261 p46 v3, Oficina Tipographica da Empreza Litteraria de Lisboa, 1880.
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