«(…) Na Península
Ibérica, os reinos cristãos em expansão são um excelente laboratório para estas modificações. As novas ideias,
trazidas para a corte portuguesa por eclesiásticos licenciados em universidades
europeias serão decisivas no desenvolvimento e aplicação das políticas
centralizadoras de monarcas como Afonso II, Sancho II e Afonso III. O velho
sistema medieval tinha grande dificuldade em assistir impassível e em assimilar
as novas transformações que rodeavam o modelo de poder. Conhecemos o século
XIII como o período onde o Direito se desenvolveu na Europa medieval. Estava em
causa um novo conceito de poder, suportado por um quadro legislativo específico
e bem construído. Cada vez mais se tornava difícil a existência de perspectivas
diferenciadas sobre os sistemas políticos e a sua governação como acontecera
anteriormente. Não havia lugar para a tolerância e para a harmonização de
pensamentos diferenciados. Assim se passava com a Igreja, onde os pensamentos
dissonantes eram catalogados como heresias. Assim era com a laicização do
Estado. A definição do Estado e dos seus direitos, o novo modelo de organização
política e social fazia com que muitos fossem forçados a escolher entre serem
leais ao Estado ou à Igreja. A definição dos poderes do soberano e o
desenvolvimento de modelos teóricos que enquadravam uma nova realidade política
forçavam naturalmente a essa escolha.
O retrato da Península
Ibérica durante a primeira dinastia portuguesa é bem vincado pela ameaça
constante do poder militar muçulmano, o que obrigou a um estado de guerra
permanente, onde o rei se torna no chefe militar incontestado, coordenador máximo
da guerra contra um inimigo comum, ao mesmo tempo que líder político cada vez
mais enraizado e determinante na acção política dentro do seu território.
Senhor, por direito próprio, do esforço da Reconquista,
acção fortalecedora do poder da Coroa, o rei português, contudo, viveu ao
longo de todo o século XIII, momentos difíceis, motivados por contestações,
mais ou menos explicitas, dos grupos nobiliárquicos e de outros sectores da
sociedade portuguesa, que desde o governo de Afonso I, se perfilam contra a
monarquia. Quando no ano de 1223, Sancho
II, sobe ao trono, esta contestação estava, mais do que nunca, activa.
Do conjunto de fontes e informações, ideologicamente bem corporizadas, que até
nós chegaram, percebe-se a existência de uma forte crise política, institucional
e social ao longo de todo o seu reinado, resultado de opções mais centralizadoras
desenvolvidas por seu pai, Afonso II e que a incapacidade funcional de Sancho
II parece acentuar.
Conhecimento mais profundo e detalhado da dinâmica das relações
políticas entre o Centro, o rei, o espaço detentor do poder e as periferias que
o compõem, complementam e estimulam. Neste enquadramento interessa-nos o
comportamento entre essas realidades, por exemplo, entre a nobreza e o rei, nomeadamente
a tipologia de funções curiais que a primeira desempenhava, juntamente com uma
sistemática observação sobre o fenómeno de patrimonialização dos cargos administrativos
realizado pela aristocracia portuguesa. Como a constituição e afirmação do
grupo nobiliárquico, nos seu expoentes político e económico, se encontra
directamente com a formação do próprio poder régio, a Crise que abalou o
País durante o reinado de Sancho II certamente se relacionará com alterações
produzidas no quadro das relações entre a nobreza e o rei, e entre este e
outras instituições imbuídas de poder e que formam o conjunto do reino. Mas não
é apenas no processo institucional das relações entre os nobres e a Coroa que
se vislumbra a perturbação sistemática do processo político em curso. Com
efeito, a discórdia, que
transversalmente afecta a gestão régia de Sancho II, e que se traduz por um assalto
da aristocracia, em luta entre si, contra a instituição monárquica, é ampliada
pela contestação desenvolvida por outras estruturas da sociedade portuguesa
coeva. Tal contestação é bem expressa no descontentamento progressivo do clero
e nas reclamações por justiça, a um rei que parece incapaz de a assegurar, por
parte dos representantes das estruturas municipais portuguesas. São bem
evidentes estas queixas e perturbações no espólio de documentos que o reinado
de Sancho II produziu, transmissores sintomáticos de uma profunda crise
política, institucional e social em que o País mergulhou e onde a monarquia se
debate». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro,
Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de
Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval,
2003.
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