Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
«(…) Do que se escreveu
sobre aquele reinado tudo deve ser percorrido com rigor e espírito crítico,
procurando compreender essas obras à luz dos contextos em que foram criadas. A
compreensão dos géneros, dos públicos-alvo, dos destinos sociais e culturais premeditados,
da sua integração em ideologias predominantes ou minoritárias. A governação de
Sancho II e todas as suas vicissitudes foram encaradas de diversas maneiras,
sob várias abordagens, todas elas criadoras de uma imagem determinada do rei, que
ocupa, hoje, no nosso imaginário colectivo, um lugar específico. Apesar do
carácter fragmentário e esparso em que muitos desses textos se baseiam, da
insuficiência qualitativa e quantitativa de muitas fontes, de orientações de
pesquisa desfocadas ou insuficientes, da não existência de um registo
documental daquele período tratada criticamente, o certo é que uma imagem se
reteve na história dos portugueses e dos seus reis, e que no caso de Sancho II
não é muito lisonjeira. A inutilidade governativa deste monarca e a sua
aflitiva incapacidade para dirigir, a sua inexistência como líder, são como flashes constantes na historiografia
portuguesa dos séculos XIX e XX. A tese do rex
inutilis vingou e, se nalguns casos, poucos, mais recentes, o
estudo da acção daquele monarca foi integrada em contextos mais abrangentes,
associados a uma ideia de Crise, com carácter mais vasto e
profundo e amarrada a um complexo cronológico mais dilatado aos dois reinados
anteriores, a mensagem predominante ainda associa aquele rei a um período negro
e infeliz da monarquia portuguesa, dominado pelo fantasma da incapacidade do
Estado em se afirmar sobre o tecido vivo que o compõe.
Em 1209, na cidade de Coimbra, nasce o primeiro (são, também, filhos
deste casamento os infantes Afonso, futuro conde de Bolonha e rei de Portugal,
a infanta D. Leonor e o infante D. Fernando de Serpa; é neto, pelo lado materno
do rei de Castela, Afonso VIII e de Leonor de Inglaterra) filho de D. Afonso II
e de D. Urraca (infanta de Castela; filha do grande Afonso VIII, o herói
cristão de Navas de Tolosa). Baptizado com o nome de seu avô, o infante Sancho
será um dos monarcas mais infelizes da história portuguesa.
Mal preparado para a governação de um país ainda em formação a sua subida ao
trono ocorre, com pouco mais de treze anos, a 25 de Março de 1223, data do falecimento de seu pai e
as circunstâncias não podiam ser piores. Naturalmente a estrutura curial do
final do reinado de Afonso II parece ter-se mantido em funções, pelo menos
durante algum tempo. Com base nos documentos que nos chegaram, da sua
chancelaria, de instituições eclesiásticas, de casas nobiliárquicas, de concelhos
municipais ou de simples particulares; das bulas pontifícias de Gregório IX, Celestino
II e Inocêncio IV ou de fontes narrativas posteriores, ideologicamente marcadas
e contaminadas, procurámos reconstituir alguns dos aspectos fundamentais desse
reinado.
No seu conjunto o volume de informação disponível sobre o período de 1223 aos inícios de 1248 apresenta-se disperso por um
conjunto de fontes documentais e narrativas, que foram apreciadas e utilizadas
pela historiografia portuguesa, quer a do Antigo Regime, quer a mais próxima
dos nossos tempos. De características bem distintas, com forte vínculo ao
universo cronístico ou mais relacionadas com processos sistemáticos de crítica
e utilização de fontes documentais, cabe às histórias gerais sobre Portugal,
neste trabalho, a primeira palavra sobre os acontecimentos em torno do reinado de
Sancho II. Um outro aspecto que gostaríamos de salientar na elaboração da
primeira parte deste trabalho relaciona-se com a forma como apresentamos as
várias posições historiográficas sobre o reinado de Sancho II. Numa primeira
abordagem, pareceu-nos que essa caracterização pudesse ser feita por modelos
historiográficos, onde as várias visões sobre Sancho II pudessem ser observadas
com maior coerência. E, continua a parecer-nos uma opção válida. Contudo,
optámos por desenvolver um conspecto historiográfico ordenado por
critérios cronológicos, desenvolvendo para cada um dos autores que nos
pareceram mais pertinentes, as posições tomadas em relação à matéria disponível
sobre a forma como a estrutura central e os subsistemas periféricos se
relacionavam entre 1223 e 1245. Pensamos que este método, além de não desvirtuar
as linhas metodológicas de cada uma das Histórias observadas, nem de as retirar
dos complexos historiográficos e dos estímulos externos onde e com que foram
produzidas, nos permitia observar o seu carácter evolutivo, e nesse aspecto
percebermos, também, a evolução historiográfica das representações sobre Sancho
II». In
José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de
Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras,
Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.
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