Conferências. Paradigma
«(…) Refiro esta cena para advertir que este livrinho que está aberto
na mão do anjo não é o mesmo livro que, no capítulo V, é objecto da cerimónia
da apertio libri nem tem a mesma carga
simbólica. Aí tratava-se de um livro selado por sete selos, cujo conteúdo nunca
chega a ser revelado; aqui, no cap. X, trata-se de um livrinho aberto que foi
entregue por um anjo ao Profeta como sucederá com Ezequiel, e que é doce na
boca porque contém a palavra de Deus. Mas
porque é que é amargo no estômago? Diferença significativa em relação
ao livro de Ezequiel. Sobre este aspecto da simbologia do livro a exegese
patrística e medieval é muito parca, pois todos se confinam, de uma maneira ou
de outra, ao isótopo da penitência, que decorre da doçura da leitura e da
pregação. Acentuemos, porém, que a palavra de Deus não se apresenta, nem a
Ezequiel nem ao autor do Apocalipse,
como mensagem oral, mas como um livro que é preciso comer. Relevamos ainda uma
outra verificação: a simbologia da apertio
libri transita de Ezequiel, em contexto normal do exercício da actividade
profética, para contextos apocalípticos ou de fim do mundo. Assim a vamos
encontrar no 4.º livro de Esdras, um apócrifo
escrito em finais do séc. I d. C. Aí a abertura dos livros (não do livro)
será feita diante do firmamento, para que venha à luz do dia a maldade dos
homens. Aqui a função simbólica da apertio
libri remete para o grande dia, o do julgamento. No Apocalipse, que recolhe a mesma tradição, a abertura dos livros
onde está contido o registo das acções dos homens é feita diante do trono. Por
esses livros foram ou serão julgados os mortos.
Com esta segunda abertura do livro completamos dois elementos essenciais
da cultura medieval, o fim do mundo e o julgamento individual: o livro é
uma ameaça tremenda porque contém a prova da futura condenação. É evidente que
se trata mais uma vez de um símbolo, neste caso de um locus terribilis. Pelo
livro se recebe a missão, pelo livro se recebe a mensagem divina, pelo livro se
recebe a conversão, pelo livro se muda de vida, pelo livro se é julgado.
Um dos casos mais interessantes deste género de abertura do livro é o que ocorre
num fragmento copta do Apocalipse
de Henoch, um apócrifo do séc. V da nossa era, mas que apresenta as mesmas
características dos apócrifos judaicos. Assim como João, o autor do Apocalipse, assim também Henoch é
arrebatado. Mas se no Apocalipse o
arrebatamento se pode entender de uma forma espiritual, no caso de Henoch diz-se
expressamente que foi arrebatado corporalmente ao céu. Uma vez aí, Henoch não
só recebe a revelação dos mistérios, mas ainda lhe é apresentado um livro,
selado com três selos, no qual se encontra escrito o nome e os desígnios de
Deus. É este o conteúdo da revelação feita a Henoch. O nome escrito é o da
Santíssima Trindade, clara interpolação de origem cristã. Mas além disso, é
atribuída a Henoch a função de escriba das acções dos homens. Trata-se de um
outro livro que vem desempenhar as mesmas funções da segunda abertura do livro
que encontramos no Apocalipse e que
se relaciona com o juízo final.
Decifração
A abertura do livro é a fundamentação da vida da Igreja e, por ela, da
sociedade ocidental. Segundo um autor de finais do séc. VIII que em plena época
carolíngia escreveu um comentário ao Apocalipse,
a abertura do livro dá-se após a descrição da forma da Igreja. E esse autor
explica que depois de a Igreja ser fundada pelos Apóstolos e pelos restantes
pregadores entre os gentios, começaram a fazer-se os comentários aos livros do
Velho e do Novo Testamento: comentários avalizados por serem escritos por
santos doutores e por estarem de acordo com a norma da fé apostólica.
Nesta perspectiva, o decifrador do texto por excelência, neste
caso, do texto bíblico, é o
comentador, o expositor, enfim, o
autor de comentários. E, mais ainda, o comentador tem uma função
importante na vida da Igreja, tão importante como a do apóstolo e a do
pregador, porque é ele que vai renovando a própria doutrina interpretada
segundo a norma apostólica da fé. Dele se espera que seja um vir ou um doctor sanctus. Retenhamos deste texto a equação apertio
libri apertio divinarum scripturarum. Permitam-me um salto do séc. VIII
para o séc. XII a fim de cotejar um texto belíssimo de Pedro Abelardo, extraído
do seu Epítome de Teologia Cristã. Diz
Abelardo, em texto que traduzo:
Este pão é a Escritura, o qual
pão, ou seja, a qual escritura os homens, como crianças sem forças, antes da
vinda de Cristo, pediam que lhes fosse partido, ou seja, que lhes fosse aberta
e interpretada, e não havia quem lho partisse, até que Cristo veio para lhes
abrir as Escrituras. Por isso diz João no Apocalipse:
E ninguém podia abrir o livro e quebrar os selos.
Depara-se-nos aqui a mesma imagem da abertura do livro cujo conteúdo
está cifrado, não obstante ser um alimento essencial. Na belíssima expressão de
Abelardo o pão é a escritura e a escritura é o pão». In
Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da
descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana
Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da
Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri,
Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.
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