Casamento
«(…) Era o entardecer de meados de Outubro. Um ou dois dos cortesãos de
Joana jogavam xadrez, outros jogos
de cartas, enquanto outros preferiam conversar. Os músicos tocavam uma das suas
baladas preferidas. Flautas e uma viola de gamba acompanhavam dois cantores,
enchendo a sala com a sua rica melodia. Sentada, enquanto escutava aquela terna
história de amor não correspondido, deixou passear o olhar pela sala, uma das
mais belas da mansão Berthout Mechelen. Encontrava-se ali havia seis
dias e, durante esse tempo, a sua disposição e a da sua corte vinham a melhorar
levemente. Um ar de expectativa substituíra o desânimo anterior. A espera e a
incerteza terminariam em breve. Os pensamentos de Joana passaram da música aos
maravilhosos acontecimentos dessa manhã. Margarida trouxera óptimas novidades:
Filipe deveria chegar nesse dia à noite. Viria vê-la no dia seguinte e o seu
casamento seria abençoado oficialmente na catedral daí a dois dias. Filipe ia
chegar Vê-lo-ia no dia seguinte! Ficara tão entusiasmada que abraçou e beijou
Margarida. As duas haviam-se tornado quase como irmãs. Sorriu ao recordar-se da
animada conversa sobre os respectivos casamentos e de como tinham tentado
vencer-se uma à outra no louvor dispensado aos respectivos irmãos. Joana
sentia-se inquieta, pois sabia que não fora totalmente honesta com a futura cunhada.
Não podia e não iria contar-lhe tudo sobre João.
Engoliu em seco, recordando-se das palavras que proferira e do que
deixara por dizer. Referira a gaguez de João, mas não mencionara o facto que
costumava perturbar os que o conheciam, sendo muito embaraçoso para os que não
o conheciam. Porém, o pior de tudo, ficara muito longe da verdade em relação
aos seus outros problemas de fala, para já não falar da sua timidez, do facto
de o lábio inferior se estender tanto para além do superior, já de si
defeituoso, que fazia com que... não, tivera o maior cuidado em evitar tudo
isso, dizendo apenas que tinha uma voz indistinta e uma forma de falar muito
desajeitada. Desculpou-se com a firme crença de que, assim que Margarida
o conhecesse, logo descobriria como era uma pessoa maravilhosa, que era tudo o
que interessava. Seria amada e protegida por uma pessoa delicada e compassiva.
A sua nova vida junto dele compensá-la-ia inteiramente por todos os anos
passados em França à espera de um casamento que acabara por não ter lugar,
seguidos pelo longo período em que ficara detida e fora tratada pouco melhor
que uma prisioneira, antes de lhe ser permitido regressar a casa. Como noiva do
anjo,
seria também alvo do amor e afeição da rainha Isabel.
Após afastar os remorsos, recostou-se no assento, sendo imediatamente
acometida por outro. Ainda não escrevera para casa e já haviam passado três
meses desde que partira de Espanha. Deveria fazê-lo em breve, mas não enquanto
escutava as suas canções preferidas. O tambor, o tamborim e as flautas baixo e
tenor tocavam agora uma alegre canção sobre uma jovem que guardava cabras e a
quem os jovens pastores atormentavam.
Oh, menina que guardas as cabras
Com as saias pelos joelhos,
diz, bela menina das belas meias,
que gostas de nós, pobres pastores.
Acompanhou a música, marcando alegremente o ritmo com os dedos nos
braços da cadeira. A música esmoreceu. Os cortesãos mais próximos da porta haviam
sido os primeiros a ouvir os passos apressados e aflitos que se aproximavam, e
as vozes alteradas, cada vez mais próximas. Fradique, de espada
desembainhada, foi o primeiro a chegar-se à porta. O medo regressara e
espalhara-se pela sala. Foram bruscamente recordados de que não passavam de
estrangeiros numa terra estranha e que a sua senhora ainda não casara com o
governante. Joana ficou sentada, tensa e aterrorizada. Pensava apenas na detenção
de Margarida em França, quando o seu contrato de casamento fora quebrado. Iria este casamento dar em nada?
Seriam aqueles sons ameaçadores o bater
das botas dos soldados? As portas foram abertas bruscamente e Fradique,
embainhando a espada, ajoelhou-se. - Fradique, almirante de Castela, Senhor.
- Reconhecera-o dos inúmeros retratos que vira e não através da figura molhada
e suja de lama que lhe estendia uma luva enlameada para que a beijasse. - Bem-vindo,
dom Fradique. Na verdade, calorosas boas-vindas para todos. Muito me agrada
recebê-los nas minhas terras e espero que a vossa estada seja agradável. - Fez
sinal a Fradique e aos restantes que se levantassem e entrou na sala, procurando
com o olhar. Os cortesãos olharam para o almirante em busca de uma explicação, mas
este encolheu os ombros, abanou a cabeça, ergueu o olhar para os céus e murmurou
para o camareiro-mor de Joana: - Parece impossível! Desafiou todas as regras do
protocolo. Esperemos que se demore muito pouco, visto ter decidido dispensar uma
audiência formal. Quantas vezes desde a nossa chegada tenho agradecido o facto
de a rainha Isabel não se ver obrigada a testemunhar uma tal impertinência da parte deste jovem arrogante?
Digo-vos que o sinto no âmago que é intenção dele insultar-nos com todos os
seus actos. Joana ouvira as boas-vindas de Filipe. Ouvira-lhe a voz,
forte e confiante, calorosa e enérgica. Qual
seria o aspecto do dono de uma tal voz? Que pensaria dela? Entrou em pânico, pois chegara o momento
do encontro e ela não estava preparada». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007,
Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes,
ISBN 978-972-23-4231-5.
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