segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O Anjo da Tempestade. Nuno Júdice. «A repartição dos bens, por outro lado, transformou essa indiferença em hostilidade para com o defunto porque, não tendo deixado testamento, deu azo a que presumíveis herdeiros…»

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O Anjo da Tempestade
«Aí por meados do século dezanove, num cerro do Algarve, a meio caminho entre o mar e a serra de Monchique, um tio-bisavô meu foi assassinado. Imagino que tenha sido no Verão, numa tarde do mês de Agosto mais quente desse século; a meio da tarde, sem uma vibração de vento, pode ouvir-se o bater de asas de uma mosca; mas não se ouvem os passos sorrateiros de um assassino, escondido atrás de umas moitas, e aproximando-se do viajante, pelas suas costas, até chegar a altura certa para desferir o tiro de arcabuz que o levará desta para melhor. O que ia o homem fazer nessa tarde de Verão em que lhe deram um tiro, não é para aqui chamado. Estaria ele a descer da serra até ao mar, de regresso de uma visita aos seus bosques de sobreiros que lhe davam o suficiente para manter a casa e o gado nas propriedades do litoral? Ou estaria a caminho das Caldas, onde iria fazer uma cura de água para os seus ossos que, apesar de sólidos e duros, poderiam começar a acusar o toque da idade nos outonos e invernos que se aproximavam?
O corpo não foi logo encontrado; e é de presumir que entre o seu desaparecimento e a altura em que se iniciaram as buscas tenha decorrido algum tempo, nessa época em que as comunicações não eram o que são hoje, ou seja, o tempo suficiente para que o corpo tenha tido tempo de começar a decompor-se, a ser atacado por animais e aves de rapina, e finalmente a ser pasto de vermes que dele tiraram o que ainda havia para tirar. Coberto por ramos e pedras, de forma mais displicente do que apressada, pelo assassino que, afinal, acabou por não encontrar muito de que se aproveitar, porque um viajante em tão ermo lugar não levaria muito de seu, para além do estritamente necessário para o caminho, o meu tio-bisavô acabou por ser localizado por um grupo de ciganos que, em vez de recolherem os restos para o transportar para uma localidade mais próxima, deram à língua na taberna onde alguém, que soubera da história e conhecia o meu familiar, alertou a autoridade que, subindo até à serra, resolveu o problema, entregando o defunto à família, que lhe deu enterro e pranto, como era devido.
O pranto, porém, não foi além do que as conveniências exigiam, primeiro porque o desaparecimento ocorrera há longos dias, durante os quais a ideia da morte tivera tempo de fazer o seu caminho e preparar os espíritos para o triste acontecimento; e depois porque o homem, solteirão e misantropo, não tinha criado grandes afectos entre próximos, e muito menos entre servidores e colegas de negócio. A repartição dos bens, por outro lado, transformou essa indiferença em hostilidade para com o defunto porque, não tendo deixado testamento, deu azo a que presumíveis herdeiros tivessem guerreado entre si o tempo suficiente para que os bosques de sobreiros tivessem ficado ao abandono, com a consequente perda da cortiça, e campos e gado se perdessem na desavença.
O que nunca terá ficado claro foi a razão por que o meu antepassado remoto foi assassinado. Em meados do século dezanove, sobreviviam ainda alguns bandos de malfeitores que tinham sido animados pelo fim da guerra civil: desertores de um lado ou outro, antigos guerrilheiros do absolutismo ou liberais perdidos na nova ordem, tinham-se reunido em grupos que viviam de roubo a casas isoladas ou assaltos a quem se metia por inóspitos caminhos sem a devida precaução. Protegidos por cúmplices locais, ou dispondo de um conhecimento seguro da região, dificilmente seriam encontrados, e menos ainda quando as próprias forças do reino não tinham nem esse conhecimento da geografia nem as informações necessárias para limpar o terreno. Quando me contaram a história, pouco mais de um século depois, falava-se do assunto como se tivesse ocorrido na véspera; era, no entanto, um homem que não deixara memória, embora muitos anos depois, num velho pacote de fotografias, me tivessem aparecido pessoas que se poderiam ter confundido com ele, com pesadas samarras de viagem e patilhas espessas a encherem o rosto. Era gente que viera depois da sua morte, mas que o poderia ter conhecido, e que ainda guardava uma certa imagem do desconcerto que teria acompanhado a existência de quem conviveu com tão terríveis sucessos». In Nuno Júdice, O Anjo da Tempestade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.

Cortesia de DQuixote/JDACT