Os Propagandistas do Estigma
A ideologia vacila
«(…) Nos últimos cinquenta anos, o coração das trevas já não é a epopeia
colonial. É a África independente, esse cocktail
de calamidades, como timidamente a qualificava Kofi Annan em 2001: o
reino assassino de Mengistu, o Négus
Vermelho, as macabras farsas de Amin Dada, Sekou Touré ou Bokassa, a loucura de
Samuel Doe e de Charles Taylor na Libéria,os diamantes de sangue de Foday
Sankho na Serra Leoa, inventor da mutilação short
sleev, pelo cotovelo, e long sleev,
pelo ombro, o recurso aos meninos-soldados, a crianças assassinas, espancadas e
drogadas, os campos de detenção; as violações colectivas, sem esquecer o
interminável conflito entre a Etiópia e a Eritreia, as guerras civis no Chade,
no Sudão, na Somália, no Uganda, na Costa do Marfim, as práticas antropófagas
no Congo, os crimes contra a humanidade no Darfur e, last but not least, o genocídio no Ruanda e a guerra dos Grandes
Lagos que vitimou três a quatro milhões de pessoas desde 1998. A descolonização
foi um grande processo de igualdade democrática: em poucos anos, os
escravizados de outrora igualaram o nível de bestialidade dos seus antigos
senhores. Eis as únicas excepções dignas de nota neste sombrio cenário: a
África do Sul o Botswana, os pequenos e os grandes dragões da Ásia, assim como
a ascensão da Índia e da China, ambas rendidas ao capitalismo, que se vingaram
roubando o fogo dos seus antigos dominadores. Em 2004, aquando da primeira
visita de um presidente da República Francesa à Argélia após a descolonização,
o que reclamava a Jacques Chirac uma
multidão de jovens? Vistos, vistos. Uma pessoa maledicente
diria: expulsaram-nos e agora querem vir para o nosso país! Esta ideia não põe
em causa a legitimidade das independências, pelo contrário, explica esta verdade
desconcertante: a Europa lamentou por menos tempo a perda das colónias do que
os ex-colonizados lamentaram a partida dos europeus. Uma vez que a Europa não
soçobrou nas convulsões da descolonização, desmentindo os que ligavam a sua
riqueza à pilhagem do Sul, à troca desigual, não resta senão sublinhar repetidamente
a sua perversidade. Doravante, graças aos meios de comunicação social, o
planeta é uma casa de vidro onde cada qual sabe o estado dos restantes e a
ânsia de comparação acelera a concorrência entre os povos. Uma vez que o velho sonho
de salvação por parte das nações proletárias está temporariamente suspenso
(ainda que, na América do Sul, se assista à formação de uma frente anti-imperialista
liderada pelo antigo presidente venezuelano Hugo Chávez), retoma-se a rectórica
da recriminação dado que a ofensiva mundial do Islão e a angústia de muitos imigrados
dão uma nova legitimidade a tais discursos. É um curioso exemplo do
terceiro-mundismo que se seguiu ao desaparecimento do Terceiro Mundo como entidade
autónoma. Este, que desapareceu nos anos 80, tinha uma certa projecção e apoiava
regimes que supostamente encarnavam o novo éden revolucionário. O
terceiro-mundismo actual é introspectivo e ensimesmado: odeia-se muito mais do
que ame os outros». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le
Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do
Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
Cortesia de PEA/JDACT