Camões e a Língua Portuguesa
«A generosidade das pessoas e das instituições dá por vezes lugar a
casos verdadeiramente singulares! É assim que, escassos meses volvidos sobre a
minha admissão nesta Academia Portuguesa da História, de tão preclaras tradições
e tão operosa actividade ao serviço da cultura nacional, eu me vejo chamado,
sendo embora o menos capaz, a colaborar nesta solene sessão que nos congrega em
homenagem a uma figura que, pela incomparável dimensão estética da sua obra,
pelos ideais a que, com tão peregrina beleza, soube dar expressão e pela perene
actualidade da sua mensagem, por assim dizer se consubstanciou com a alma de
Portugal. As culpas do delito, pelo menos em boa parte, cabem ao douto Conselho
Académico, que me cometeu o encargo. Por mim, entendi ser meu dever
aceitá-lo, não fosse a desobediência escondida sob a capa da modéstia, parecer
ingratidão para com a Academia que, com tanta benevolência, me acolhera no seu grémio.
No cumprimento do programa estabelecido para a sessão desta tarde,
coube-me propor algumas reflexões, reduzidas a breve síntese, sobre um tema tão
vasto e multímodo como é o de Camões e a língua portuguesa. Só
quando se explorarem e aprofundarem, com demorado rigor científico, os filões
apontados pela malograda sagacidade de Serafim Silva Neto para uma história
completa da língua portuguesa, poderemos chegar à determinação exacta do papel
de Camões no aperfeiçoamento e
fixação da língua portuguesa, bem como da decisiva e duradoira influência da
sua obra na evolução e unidade do nosso idioma, falado, a partir do seculo XV,
desde a Ocidental praia lusitana
aos reinos lá da Aurora e aos campos da quarta parte nova.
Mas a crítica setecentista, que estudou muita coisa hoje esquecida ou
ignorada, não deixou de ter já uma clara consciência desse papel e dessa
influência. Para de tal facto nos certificarmos, bastará uma breve leitura das memórias
do padre António das Neves Pereira e de Francisco Dias Gomes, premiadas em 1792 pela Academia Real das Ciências.
Particularmente o segundo. Baseado nas teorias explícitas dos autores
clássicos acerca da elocução, em especial nas de Aristóteles, Cícero, Quintiliano
e Longino, mas sobretudo informado sobre a critica mais moderna de Locke,
Condillac ou Du Marsais, e seguindo, antes de todos, o método que Voltaire
aplicara no seu comentário às obras de Corneille, Dias Gomes procedeu a um aturado
estudo comparativo dos nossos poetas quinhentistas, para traçar o caminho que
progressivamente levara a expressão poética desde a dureza do estilo, ainda mal
acepilhado pelo estro de Sá de Miranda, à riqueza e variedade do idiolecto
camoniano, através da fria elocução de António Ferreira, da harmoniosa
suavidade de Bernardes e das rasteira musa de Andrade Caminha. Nem todos os
seus juízos, como é evidente, se podem hoje aceitar, já porque a cronologia não
permite uma tão regular ordenação, já porque os conceitos estéticos e
linguísticos que utilizou carecem naturalmente de adequada correcção. Mas a sua
afirmação de que a poesia camoniana representava um ponto culminante no
desenvolvimento da riqueza expressiva da língua parece-me não ser passível de
discussão, não sendo por isso abusivo ou sequer arriscado manter de pé as
conclusões que a singular finura critica do académico exprimia nestas palavras.
Camões em fim, auxiliado do seu
grande engenho, e sciencia lhe estabeleceo [o idioma português] de todo a
analogia, e o enriqueceo de vozes, de formulas infinitas extrahidas das Linguas
sabias, ou nascidas no elaboratorio immenso da sua grande imaginação, com as
quaes trouxe os superlativos de huma só fórma em quasi todas as desinencias,
que conservão na Lingua Latina, e determinou a indole do Idioma Portuguez,
fazendo-o capaz de todos os assumptos, dando-lhe magestade, e harmonia, perspicuidade,
e atticismo; fazendo-o finalmente flexível para todos os estylos, e capaz das
mais sublimes audacias, para lhe determinar a elegancia, sem se affastar da
clareza, qualidades, que ficou conservando como distinctivos perpetuos do seu
caracter.
In Aníbal Pinto Castro, Camões e a Língua Portuguesa, Quatro Orações
Camonianas, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1980.
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