sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Questionar a História. Ensaios sobre História de Portugal. António Borges Coelho. «… os problemas adensam-se. Por onde começar? Pela geografia, pelo económico, pelo político, pelo cultural? Depois, já dentro do terreno escolhido, que ideias-ferramenta utilizar? Civilização? Complexo histórico-geográfico? Forças produtivas? Relações de produção? Classes e luta de classes? Ordens? Família?»

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Em busca do conceito de História
«(…) 8. Também não se pode determinar uma vez por todas e para todas as épocas a totalidade em que a história nacional se insere. Há que definir a par e passo os contornos mais visíveis dos contextos, seguindo as leis, as cadeias, os vincos das instituições. Que esta comunidade, este povo que somos, este corpo organizado, não é só e sobretudo a fronteira que o unifica. A fronteira, os limites, os factores aglutinantes são os laços e as relações sociais. Essas leis são um produto social e de classe. Estamos unidos pela língua, laços biológico-mentais-sociais. Pela estrutura socioeconómica. Unidos pela ideologia, uma bandeira, um hino, uma mística. Unidos um pouco pela carne. Juntos e contidos pelo aparelho político-militar. As barreiras das armas fronteiriças, das alfândegas, são impunemente saltadas pelos grupos dominantes. A história do monopólio quinhentista da pimenta constitui já um exemplo significativo da impunidade no saltar das fronteiras. Para defender esse monopólio estatal, estabelecido à força contra os interesses venezianos e turcos, morreram milhares de portugueses nos mares do Oriente em naufrágios e batalhas. Setenta anos volvidos, sem dispararem um tiro, de pleno direito, com todas as honras e benesses, o grupo italiano dos Affaittatti, preso a Portugal pelo negócio e a alcova, recebeu das mãos da coroa portuguesa o monopólio da pimenta que tantas vidas ceifara.
Repete-se: Portugal não vive só. Partilha com a Espanha o leito peninsular. Outros países estabeleceram connosco relações estreitas. Na Europa, a Inglaterra, a Flandres, a França, a Itália, o Império, a Hansa, a Irlanda. Na África, Marrocos, a Argélia, a Tunísia (Magrebe) e principalmente nos tempos modernos a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Moçambique. Na América, o Brasil e outros países, sobretudo latino-americanos. Na Ásia, alguns territórios da Índia, Macau, Timor Leste, Ceilão e outros territórios e nações. Mas nem só estes países tiveram comércio político ou outro connosco. Todos os povos da Terra estão hoje unidos directa ou indirectamente. Basta lembrar o comércio e a notícia como símbolos de toda a cadeia de laços complexos que unem hoje quase todos os homens da Terra e já do espaço exterior.
9. Esta reflexão leva-nos a um outro ponto: as histórias nacionais constituirão os caboucos essenciais em que assenta a História Universal ou pelo contrário terão de ser as histórias nacionais a comungarem, a explicarem-se na História Universal? Não se trata de opor História Nacional a História Universal, trata-se de defender que as leis e conceitos mais gerais terão de ser testados no Todo e não só na sua parte. Hoje os homens de toda a Terra são a face visível do Todo mas no passado comunidades de ameríndios e outras comunidades não se comportavam como verdadeiras totalidades? As histórias nacionais não podem encerrar-se em si próprias embora do ponto de vista do método da investigação constituam pontos de partida essenciais. As leis sociais vencem os molhes opostos pelos aparelhos políticos-militares dos Estados, mesmo quando estes não são apenas agentes, para uso interno, da política e dos interesses dos Estados mais poderosos. Contudo, não se nega que Portugal seja uma unidade viva do Todo Social onde as leis mais gerais podem perder a força e quebrar-se; unidade que se traduz num aparelho político-militar, económico, ideológico, dotado de autonomia e que carreia, ao nível da consciência, educação, casa, clima, paisagem, língua, ferramentas, tradições, literatura, arte, epopeia, sangue misturado, crime, castigo, amor habituado, amante, excomungado.
10. Repare-se que nos mantivemos até aqui nos problemas gerais que esta história exemplar levanta. Mas se entrarmos no terreno concreto da investigação, os problemas adensam-se. Por onde começar? Pela geografia, pelo económico, pelo político, pelo cultural? Depois, já dentro do terreno escolhido, que ideias-ferramenta utilizar? Civilização? Complexo histórico-geográfico? Forças produtivas? Relações de produção? Classes e luta de classes? Ordens? Família? Nenhuma destas ferramentas pode ser ignorada, mas terá de ser definida e testada caso a caso, ou seja, temos de saber privilegiar, a par e passo, os conceitos mais adequados. Por exemplo, demonstrámos já que, para a sociedade do chamado Antigo Regime, ignorar a luta de classes e substituí-la pelo conceito de ordem não compensa. Os conceitos de classe e ordem relacionam-se estreitamente, mas o segundo vai ganhando novos conteúdos de classe, tornando-se um conceito compósito, aglutinador de grupos opostos, tornando por si só a explicação do processo social equívoco e até impossível.
11. Referimos algumas das dificuldades que a História de Portugal levanta. Pergunta-se: será possível a um só historiador abarcar todo o espaço e tempo que esta investigação exige? Os compêndios que trazem os nomes História de Portugal procuram traduzir melhor-pior a história vivida do nosso povo, mas serão o resultado de uma só investigação pessoal? Essas sínteses gerais alimentam-se, para as diferentes épocas, de trabalhos analíticos, próprios e sobretudo alheios. Por sua vez estes trabalhos de análise beneficiaram já dos trabalhos daqueles que cultivaram as ciências auxiliares da História; do trabalho dos cultores das ciências sociais e das outras ciências sem esquecer as matemáticas. No trabalho de investigação, é o particular, é a análise do particular, que ressalta. Mesmo nas histórias gerais, Universal ou Nacional, quando se pretende alcançar o Todo, só o conseguimos através do particular. Deste particular nos fala Michel de Certeau quando escreve: … nada pode apagar a particularidade do lugar de onde falo e do domínio onde prossigo a investigação [...] o gesto que liga as ideias a lugares é precisamente um gesto de historiador. Esta realidade não parece exclusiva da história. Cabe também às outras ciências. Trata-se de uma característica do entendimento que Leibniz bem caracterizou a propósito da demonstração». In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.

Cortesia de Caminho/JDACT